– Quarta-feira, quatro horas da tarde, semana praticamente encerrada – diz Almeida, para alegria dos seus companheiros de escritório.
Hoje é sexta-feira, mas Almeida tem feito essa piada desde o começo da semana, aparentemente, sem até agora ter perdido a graça. O carnaval está chegando, trazendo com ele alguns dias de folga,”merecidos“, diriam todos do escritório de contabilidade situado no último andar de um prédio velho, de oito andares, sem elevador, em uma rua suja, no pior trecho do centro. Além da rua encardida, a vista se resume a outros prédios igualmente carcomidos.
Pedroso, o chefe implacável, surge das sombras trazendo com ele o silêncio respeitoso de seus medrosos subalternos e diz, com seu vozeirão de cantor de ópera:
– Está engraçado o dia hoje?
Não há respostas, apenas o olhar envergonhado de juvenis pegos fazendo algo errado. Diante do Pedroso quaisquer adultos deixam de ser adultos e se transformam em adolescentes temerosos, gaguejando, diante do diretor da escola:
– Como eu acho que não estão fazendo nada e não há nada para fazer…
Parou de falar e olhou para todos enquanto todos olharam para ele, sua voz ficou suspensa no ar e os contadores esperando que ele continuasse, que ele terminasse, em algum momento aquilo que ele veio dizer:
– E o trabalho realmente apenas começa depois do carnaval, vou dispensá-los agora, bem mais cedo do que normalmente. Quem não voltar na quinta feira da semana que vem está demitido!
Enquanto ele se afastava, todos se entreolharam, meio que se perguntando se
a última frase foi um gracejo ou não. A opinião silenciosa dava a entender que não. Mas o Pedroso estava certo, pois realmente não havia trabalho. Ouvia-se apenas o barulho do ventilador tentando aplacar o calor e, mais ao fundo, o tic-tac do relógio, sempre cinco minutos atrasado.
Então todos se levantaram ainda em silêncio, colocaram seus paletós baratos e foram embora, ninguém se despediu de Pedroso e ele não de despediu de ninguém, talvez não goste de despedidas, alguns diriam. Os contadores se despediram em silêncio, com acenos, cada um seguindo seu caminho. Mesmo aqueles que inicialmente iam para o mesmo lugar, o fizeram com alguma distância uns dos outros, como se estranhos fossem. Entre eles o Almeida, que ainda demoraria 3 horas para chegar em casa.
Felizmente, nesse caso, o prédio onde ele morava tinha elevador, um modelo antigo que balançava e fazia muito barulho, subindo ou descendo, mas o síndico garantia que estava tudo funcionando como devia funcionar. No 7° andar, quando a cambaleante porta do elevador abriu, Almeida saiu lentamente e sentiu o cheiro de cigarro do vizinho que ele não conhecia, isso, mais do que qualquer outra coisa, lhe dava a sensação de estar em casa.
Quando entrou no apartamento sentiu o bafo quente de um lugar que passava o dia fechado. Foi ao banheiro, depois se sentou no sofá verde, tirou a gravata e os sapatos pretos, olhou para o relógio e viu que era hora de sair novamente. Ele ainda tinha que ir no supermercado, no carnaval as prateleiras ficam razias, estava tarde, mas era necessário.
Se levantou com dificuldade, suas costas e pés doíam, em breve seu bolso doeria também, mas ele ainda não sabia disso. Um quarteirão pra lá e outro pra cá, era esse o caminho que fazia pelo menos uma vez por mês, sem modificações em uma rotina eterna que seria atrapalhada apenas pela própria mortalidade.
– Olá? Pode me ajudar?
Uma garota com três malas rosas interpelou Almeida no lobby do prédio e ele, segurando as várias sacolas do supermercado, disse, meio envergonhado:
– Agora não posso! Mas vou voltar para ajudar.
Quando chegou no apartamento e começou a guardar as compras se arrependeu de ter dito que voltaria para ajudar. Deveria ter ficado na primeira frase, pensou. Depois sentou no sofá, que havia comprado usado e barato, mandou limpar e agora servia bem ao uso que se destinava: era onde ele se sentava nos solitários fins de semana e às vezes, nos outros dias. Começou a pensar se deveria voltar como havia dito ou se foi apenas uma frase inconsequente, mas sabia o que deveria fazer, por isso se levantou e voltou para ajudar.
– Achei que havia se esquecido -, ela disse sorrindo.
Almeida pensou em fazer um gracejo, mas ficou em silêncio, se fosse no escritório ele faria uma piada, ele pensou, depois continuou em silêncio. Colocou as pesadas malas sem rodinhas dentro do elevador que começou a ranger e balançar. Uma mosca entrou com eles e saiu em seguida, antes da porta se fechar, como se temesse pela própria vida. Ela apertou o botão do 5º andar, Almeida nunca havia ido nesse andar, ele nunca havia ido em qualquer outro que não fosse o 7°.
– Mora aqui faz tempo?
Almeida olhou para ela, para o chão e depois para o alto, como se ela tivesse feito uma pergunta complicada e a resposta estivesse de alguma forma pairando no ar, esperando que ele estendesse os braços e agarrasse, mas apenas se fosse rápido o suficiente para saber onde ela estava. Por fim respondeu, bem sério, bem verdadeiro:
– Moro aqui desde sempre. Nem lembro um lugar que eu tenha vivido antes.
– Eu gosto de mudar. não mais do que 6 meses. Quero conhecer toda essa cidade,
– E o que há nessa cidade além de…
– Chegamos! Me ajude com as malas, eu seguro o elevador.
E depois de tirar as malas do elevador, Almeida as colocou no apartamento:
– Aluguei já mobiliado. Venha! Vamos fazer um tour juntos!
Era igual ao apartamento dele, menos os móveis, que aliás eram novos, “sem charme”, pensou Almeida, enquanto fingia gostar de tudo. Não viram os quartos e no final se sentaram no sofá, cinza e com cheiro de loja de móveis, provavelmente recém comprado.
Só então Almeida percebeu que o apartamento ficava no mesmo lugar do dele, dois andares para baixo. Era até mesmo a mesma vista: outro prédio mais ou menos igual. Ela parou então na frente dele e disse de uma maneira quase displicente:
– Acho que ainda não conhecemos o quarto.
O Almeida então conheceu o quarto, inteiramente, cada centímetro, cada canto, de uma dessas maneiras indescritíveis, mas que cada um pensa, de tempos em tempos. Meio constrangido, quase envergonhado se tivesse que contar em público, assim é a natureza humana, diriam alguns.
– Acho que depois disso tudo vou acender um cigarro.
Ela pegou um cigarro, em um pacote recém aberto, acendeu com um isqueiro verde, desses comuns, de plástico meio translúcido, deu uma longa tragada e soltou a fumaça com lentidão. Nesse momento, um pouco estranhamente, Almeida pensou no cheiro do corredor do seu andar e no vizinho que nunca conheceu, ou seria uma vizinha?
– Fuma?
– Não.
– Está bem, vou terminar o cigarro e ficar juntos. Amanhã de manhã veremos como será.
Almeida então acordou com a claridade, não com a luz do Sol, um prédio no meio de vários prédios, não tem mais raios de Sol, apenas calor. Talvez no último andar, pensou Almeida. Virou para o lado e viu que estava sozinho, se levantou meio a contragosto e encontrou o café da manhã pronto.
– Nesse bairro tudo abre cedo! Mesmo no sábado de carnaval! Pude comprar algumas coisas e… aqui está! Venha! Vamos comer juntos.
E depois andar, pelo bairro onde tudo abre cedo, sem pensar em voltar, sem pensar em nada, é apenas festa, apenas o carnaval que pulsa em uma cidade velha e cansada Correr no parque, andar pelas calçadas, ver as vitrines, comer maçã do amor, muita maçã do amor.
Já no domingo de carnaval sentar no chão sujo e ver as pessoas passando, sem se importarem com nada, pois nada mais importa, exceto… não há exceto, nada importa. Mas Almeida diz:
– Vamos voltar?
– Por quê?
Porque nada mais importava e ela sabia bem disso, voltaram se arrastando, lentamente, com o Sol lhes acompanhando o caminho, o som alto, ao fundo, lhes servindo de trilha sonora. Era domingo à noite quando finalmente chegaram ao apartamento dela e desmaiaram juntos, na mesma cama. Depois despertaram e dormiram novamente, tantas vezes, que quando finalmente acordaram de verdade, era terça de manhã e eles ainda eram um casal apaixonado, em pleno carnaval.
– Isso não é amor.
– O quê?
– Você sabe. Isso não é amor, nem paixão, nem a simulação de uma lua de mel, nem amizade. É apenas… como posso dizer? Talvez um momento único, no carnaval, é isso.
Almeida sorriu constrangido, queria gritar a plenos pulmões: “EU TE AMO!”, mas não gritou. Sentiu ela roçando sua pele, mais uma vez e assim ficaram, em silêncio, quase constrangidos, mas alegres demais para sentir outra coisa além da alegria do presente.
Almeida acabou adormecendo e quando abriu os olhos, na manhã do dia seguinte, percebeu que algo estava diferente. Levantou e sentiu apenas o cheiro de um lugar sem gente.
Não demorou muito para ele encontrar um bilhete, ou quem sabe uma carta Não, de tão pequeno era realmente um bilhete e dizia assim:
“Não foi amor. Nem foi paixão. Sequer sabe meu nome e eu também não sei o seu, é o mais básico que existe em qualquer contato humano e nem isso fizemos. Nem adianta me procurar e por que o faria? Foi apenas carnaval.”
Almeida ainda tentou, foi na portaria e o porteiro nada sabia, procurou “pistas” pelo apartamento, mas se sentiu um tolo fazendo isso, como se fosse um adolescente que vê muito filme e acha que a vida acontece igual. Daí parou. Era inútil continuar tentando e ele bem o sabia. Estava, afinal de contas, cansado, e foi até o seu apartamento para descansar.
Era noite da quarta-feira de cinzas quando colocou o despertador para tocar na manhã seguinte, quinta-feira, dia de trabalhar.
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