Menu fechado

Capitão Cadeira e a Trupe das Almofadas

Para te contar esta história, eu até lhe pediria que se sentasse à cadeira, mas isso seria muito estranho, pois Cadeira é o meu capitão. Deste modo, peço-te que fique em pé ou ao chão se sente, mas não pegue uma almofada para a bunda! Isso seria ainda mais estranho, visto que Almofada sou eu, e não gosto de bundas em minha cara!

Claro, há muitas cadeiras pelo mundo, e almofadas de montão, mas a nossa tripulação é diferente de todos as outras mobílias velejantes a boiar por aí, pois Cadeira fez seu nome não pelos estofados que tem — e ele tem muitos —, mas pelo que pagara por cada um deles.

Como eu sei disso? Pois ele adora contar histórias, e eu adoro escrevê-las! Nos mares serenos das rotas que tomamos antes de partir para o Triângulo das Mesudas, meu capitão insiste em tomar um excelente chá de cadeira.

O “Para-raio”, como Cadeira chama seu papagaio, mexe a cabeça assim bem doido pois participou de quase todas as aventuras com o dono! Certa tarde eu lhe perguntei:

— Capitão, tem um minuto?

  O Para-raio ecoou “minuto, minuto” e o capitão me encarou com um olhão:

— Rá, tenho até dois!

Poxa vida, como eu escreveria uma história tão épica em apenas dois minutos!? Tive que dizer:

— Na verdade, capitão, eu estava pensando se poderia ser um pouquinho mais… — “Mais, mais”, o papagaio dizia enquanto ele me encarava; estufei o peito e continuei. — O senhor já teve quantos pés?

Ele riu e bebericou o chá de cadeira. Parecia geladinho. Depois de um gole, exortou:

— Tive quatro! Eu sei, eu sei, ei, ei, ei!

— E também dois olhos, não?

“Olhos, olhos”, disse o Para-raio. Cadeira continuou:

— Sim, pois certo dia fui comprar um sofá, uma belezura de seda assim bem grande ó, e o comerciante, uma poltrona lazarenta, disse que eu não conseguiria comprá-lo pois o preço era o olho da cara. — “Cara, cara”, o papagaio disse enquanto ele continuava. — Aí eu fui lá e tirei o olho pra comprá-lo, rá! Tinha que ver a cara dele… Ficou tão assustado que me deu o sofá de graça.

Meu capitão é mesmo muito inteligente! Mas eu não podia deixar de perguntar:

— E para onde foi o olho, capitão?

Ele tirou o tapa-olho, mas o olho estava todo branco! Finalmente, Cadeira confessou:

— Fui colocá-lo de volta, mas pus ao contrário, aí fico vendo meus esqueleto tudo agora!

  “Agora, agora”, Para-raio ecoou, e eu não pude discordar:

— Que genial!

— Rá, eu sei, eu sei, ei, ei, ei!

Enquanto aguardava o capitão a apreciar o chá, pensei em voz alta sem querer:

— Se foi assim com o olho, imagina com o pé…

— Pois é…

— Ah, capitão, desculpe!

— Eu sei, ei, ei, ei! Perdi um pois levei um pé na bunda, e eu nem tenho bunda, olha só! — E me mostrou a bunda, e de fato não tinha bunda! — O outro pé eu mesmo cortei numa luta.

  “Luta, luta”, o Para-raio disse, e eu exclamei:

— Uau! Mas por quê?

— Pra ficar em pé de igualdade com um capitão de outro navio, um tal de Canapé!

— E você o venceu!?

— Venci, pois de tanto balançar o sujeito dormiu!

Meu capitão é mesmo um gênio, não? Mas, esperei a última aventura, e ela não veio. Ele estava sério quando perguntei:

— E o outro pé, capitão, como foi?

— Não era um pé qualquer. Era o meu pé traseiro, e o esquerdo ainda por cima.

“Cima, cima”, o papagaio tagarelou, e não pude deixar de ponderar:

— E o que o pé traseiro esquerdo tinha de especial?

Ele balançou o chapéu, como se a brisa lhe fosse levar as mágoas. Não levou. Disse, enfim:

— Tu não sabes, Almofada? Quando uma cadeira se casa com outra, no Cadeirismo, o anel de cadeirante é posto no pé esquerdo traseiro para que, em frente ao Encosto, as almas dos amados jamais fiquem empenadas! Eu sei, ei, ei, ei.

— Ó, capitão, então este é o pé que levaste na bunda?

— Não, Almofada. Este, na verdade, foi o que me fez pôr um pé no freio. Eu sei, eu sei, ei, ei, ei…

O convés ebulia com o encontrar dos sabres. Cada lâmina um serrote flexível que mais parecia trovão, trucidava ripa, estofado e fazia jorrar farpas naqueles que pregavam uns aos outros em feroz embate.

Mas dentre todos os bancos, Cadeira era o mais ousado. Mesmo bamboleando, seu papagaio caía com tudo nos inimigos, tirando deles seu serrote, deixando-os à maré da fúria do capitão.

Mas ainda mais lendária que Cadeira era sua esposa, Banqueta. Diferente de Cadeira, ela era alta, e seu quadril hipnotizante era uma giratória que fazia rodopiar as lixas que davam tanta gastura ao adversário que ele soltava as espadas somente para tapar os ouvidos.

Juntos, eles eram implacáveis. O capitão pirata do outro lado, um armário a tamborilar no convés, embalando almofadas e bancos com abraço mortal, finalmente encarou marido e mulher:

— Então este é o tal do casal cadeirado de que tanto ouço falar!

Interpondo-se entre Armário e seu marido, a bailarina mortal interrompeu sua dança. Cadeira disse:

— Banqueta, eu já te disse que não preciso de prote…

— Calado! — Banqueta era bem irritadiça. — Ou não vai ter ninguém para te passar óleo de peroba mais tarde.

  Cadeira não pôde objetar, pois óleo de peroba era o fraco dele. O Armário riu, arreganhando as portas de sua boca como uma caverna, uma arcada de cabides tortos a tiritar:

— Rá, pelo visto essa banqueta faz tu de balanço, Cadeira! Desde quando tu decidiu que amor valia a pena?

Mas o que Armário não viu foi que Banqueta já iniciava seu espetáculo, e sua dança fazia “tumbala-catumba-tumba-tá”! Seus golpes eram tão rápidos que Armário mais parecia encomenda em frete barato. Por pouco que ele não virara caixão. Armário exortou, embasbacado:

— Que tipo de marcenaria é essa!?

Não havia nada que ele pudesse fazer. Seus capangas já estavam empenados ao chão e Para-raio já bicava o leme do navio inimigo. Armário se arrastava para longe, mas Banqueta era implacável até em linguajar:

— Esta marcenaria, Banqueta, é de um tipo que você nunca poderá entender! Enquanto você e seus móveis imperiais usam da mobília dos pobres ao seu bel-prazer, nós a regamos, semeamos e confeccionamos com mui esmero. Pelo que fizeste à minha irmã, farei você desejar que tivesse sido uma horda de cupins, e não eu, a te matar.

Cadeira pôs seu pé no ombro de Banqueta, tentando acalmá-la:

— Querida, acho que ele já aprendeu a missão. A trupe das almofadas é pra lutar contra a Mobília Imperial, e não se tornar como ela, não se lembra?

Banqueta gentilmente lhe tirara o pé do ombro, mas seu olhar permanecia destemido:

— Meu marido está certo, Armário, para o meu azar e sua sorte. Mas, se quiser sair boiando por aí ao invés de se transformar em ripas para casinha de papagaio… — “Papagaio, papagaio” disse Para-raio ao longe. — Vai ter que me dizer quem te mandou aqui, e onde ele está!

Cadeira já suspeitava a resposta, e que sua esposa somente o perguntara para confirmar os boatos. Armário se tremia tanto que mais parecia um varal quando disse:

— É o Trono, ele ameaçou cortar o estofado de todo mundo que negasse a cumprir uma de suas ordens. Eu disse que traria vocês diante dele somente para que ele fizesse uma grande fogueira e queimasse vocês assim bem quente ó.

Pelo olhar de Banqueta, Cadeira pressentiu o pior. Quando a esposa subiu nas pilhas de inimigos e se dirigiu à tripulação, ele sentiu as farpas do corpo arrepiando:

— Ouviram, almofadas? Queriam nos jogar em fogueira! Eles usam nossos corpos de carvão, sendo que aqueles que construíram as lareiras que aquecem suas ossadas foram ninguém mais do que nós mesmos!

As almofadas, empolgadas demais para ter bom senso, jogaram a si mesmas no ar, com gritos de ultraje e desafio. Como não havia ninguém para segurá-las, Para-raio teve que pescá-las do mar. Banqueta continuou:

— Mas assim como o céu, o mar é para todos, e já que insistem em nos perseguir, vamos mostrar o que acontece quando se senta onde não deve!

— Nossa — perguntei —, ela era assim mesmo, capitão?

— Era tudo isso e mais um pouco. Era pau pra toda obra. Eu sei, eu sei, ei, ei, ei.

— E o que se seguiu?

A cadeira de salva-vidas já anunciava a chegada do navio de Armário de volta ao Porto dos Móveis, onde Trono aguardava ansiosamente a chegada de sua encomenda. Diferente do que muitos achavam, Trono fedia, pois na verdade era de uma família muito antiga, as Latrinas, que chegaram ao poder por afundar seus adversários em esgoto.

Trono mandou construir uma pira no alto de sua torre, para que todos os cidadãos do reino de Madeirasa pudessem ver o casal de renomados piratas arder. Trono nem sempre foi mau, mas quando Banquinho, a irmã de Banqueta, recusou-se a sair com ele e o buquê de flores que ele pedira para entregarem em seu jardim foi amassado por ela, com o recado de que ele jamais mereceria ser amado, Trono aceitou seu desafio.

Como recompensa, mandou substituir as flores por sementes de urtiga e plantá-las ao redor de sua residência, assim ela não cheiraria nenhuma outra flor. O que ele não sabia era que ela era alérgica, e não tardou para que lixasse a si mesmo até não sobrar nada.

Um arauto adentrou o topo da torre. Para evitar caretas, Trono ordenou que todos os súditos de seu palácio usassem pregadores no nariz, assim não teriam de lidar com seu cheiro, por isso, todos tinham a voz fanha ali. O caramanchão disse:

— Majestade, Armário acaba de chegar ao porto com os cativos.

Trono disse, ajeitando sua coroa (era uma tampa de privada):

— Obrigado, Caramanchão. Pode mandar Armário trazê-los.

Aquiescendo, o Trono aguardou. A cordinha da descarga, seu único fio de cabelo, estava trançada de modo que imaginou como seria se estivesse escondida num chapéu de pirata. Mas não! Não poderia ingressar nesta vida, pois nada era mais fedido que a brisa do mar.

O caramanchão anunciou a chega dos prisioneiros, e assim que Cadeira e Banqueta entraram, acompanhados de Armário, Trono se deliciou com suas caretas de nojo. O que lhe surpreendeu foi o arregalar dos olhos de Armário, que nunca lidou para tais futilidades. Amarrados do jeito que estavam, suas feições não eram as de cativos, e por isso ralhou:

— Parece que a ‘Trupe das Almofadas’ precisa de costureiras, rá, rá!

Se bem que ele não vira mais nenhum integrante da tripulação de Armário. Mas isso não importava tanto quanto o que Armário estava prestes a dizer:

— Como prometido, Tronestade, trago-lhe os cativos.

E se ajoelhou diante de si, e de tão grande que era, tampou a visão que Trono tinha de Cadeira e Banqueta. Mas como rei justo, Trono disse:

— Muito bem, Armário. Como recompensa por tua nobre empreitada, dar-lhe-ei um guarda-chuvas, assim, além de guarda-roupas poderá se proteger da água que cai do céu!

Armário até chorou quando ouviu isso. Chorou que nem uma gavetinha. Trono gostava dele, mas aquilo já era demais:

— Ora, não é para tanto! Não precisa chorar, também. Sou um bom rei, não sou?

Soluçando, Armário disse:

— E-e-eu sei, Tronestade. E sinto muito…

— Pelo quê?

Mas quando Armário saiu do caminho, Trono gritou:

— Seu traidor! Caramanchões, matem-nos!

Cadeira e Banqueta estavam soltos, e antes que destronassem o rei, Trono pulou sobre Armário habilmente. E o pau torou. Os mais habilidosos cavaleiros contra os mais habilidosos piratas fizeram a morte de amante, e cada golpe fazia serrotada parecer trovão.

Armário chorava enquanto Trono se protegia de Para-raio, que de repente caiu dos céus segurando uma almofada flamejante. Trono reconheceu um dos membros da tripulação de Armário, e deu uma descarga no capitão traidor tão poderosa que o brutamontes caiu na pira. Antes que pudesse gritar, a almofada flamejante caiu na boca dele, e Trono, esperto que era, pegou o guarda-chuvas para se proteger.

Mas Banqueta era implacável, e dava piruetas de lá para cá, tentando alcançar o Trono:

— Admita! Você a matou, engavetou-a!

— Eu não fiz por querer! — exclamou Trono. — Eu não sabia que ela era alérgica.

Mas Banqueta parecia uma víbora venenosa. Sua lixa atravessava os caramanchões despreocupadamente, enquanto Cadeira cobria a retaguarda de sua amada.

— Agora, seu fedorento! — As chamas já lambiam a pira quando Banqueta o flanqueou, forçando-o contra a imensa pira. — Vai queimar por tudo que fizeste!

Trono sentiu o beijo do fogo corroendo sua privada. Se ao menos tivesse um bidê funcional, poderia conter a conflagração, mas decidiu desde cedo que jamais se envergonharia de seu aroma, por isso escangalhou a ferramenta.

— Jamais conseguirão escapar — exclamou Trono —, há guardas por toda parte da cidade!

E era verdade. Mas diferente de Cadeira, Banqueta não parecia ter medo de morrer. Trono não cederia sua vida sem uma luta, e seria tão árdua quantos as brasas que agora lhes envolviam. Para-raio caía de um lado para o outro, atrapalhando os caramanchões de ajudarem seu rei.

Frente a frente, Trono e Banqueta se prepararam. O rei ajustou o guarda-chuvas, desarmando-o e segurando sua ponta afiada contra a usurpadora. As últimas luzes de um céu poente encontraram o metal, despejando luz sobre aqueles que prometiam a escuridão eterna uns para os outros. Lá embaixo, o povo gritava, sem saber o que acontecia. Lá em cima, Trono anunciava o começar da luta:

— En garde!

Lixa e lâmina se encontraram, e a aspereza de seus golpes fez faíscas arrefecerem como vaga-lumes de brasa num mar de fogo, que dançava com o vento à medida que a morte tecia sua música.

— Admita! — exclamou Banqueta, incidindo botes mortais. — Você a matou, engavetou-a!

Mesmo que ela fosse lutadora feroz, já estava cansada de tantas batalhas em um dia, mas Trono fez por merecer seu título. Invés de ingressar na dança de Banqueta, ele manteve a luta a seu ritmo, e toda vez que ela tentava dar o bote, ele a espetava de tal jeito que ela tinha que recuar para não cair nas chamas.

Finalmente, identificou os padrões de ataque da adversária, e fingiu baixar a guarda. Quando ela tentou lixar sua porcelana, ele enrolou a cordinha da descarga em seu quadril, trazendo-a para perto de si:

— Quer saber, Banqueta? Pensando agora, mesmo que sem querer, valeu a pena matar tua irmã somente para ver a tua cara de decepção, pois diferente dela, você não merece a vida que tem!

Cadeira gritou, enquanto lutava contra caramanchões que o haviam cercado:

— BANQUETA, NÃO!

Invés de jogá-la para a pira, sabendo que Banqueta possuía um quadril giratório, Trono deu um puxão na cordinha que a enlaçava, fazendo-a girar de tal forma que foi atropelar os caramanchões restantes e tombar na beira da torre. Cadeira saltou, deslizando sobre o chão até alcançar sua amada, segurando-a com o seu pé esquerdo traseiro. Disse:

— Aguenta firme, amor!

  Trono estava só, pois todos os caramanchões restantes estavam tombados, queimados ou depenados, mas o rei fez questão de empunhar seu guarda-chuvas enquanto caminhava na direção de Cadeira:

— Sabe, Cadeira, durante todos esses anos em que cacei você e essa tua trupe mesquinha de almofadas, eu nunca achei que você seria tão tolo de se casar com alguém da ralé dessa banqueta.

Cadeira fazia de tudo para segurá-la. Banqueta tinha lágrimas nos olhos quando disse:

— Amor, olhe para mim!

— Eu vou te puxar… — Cadeira não aguentava mais, mas tirava forças de sua fé, o Cadeirismo, para continuar. — Eu vou conseguir!

— Olhe para mim, amor!

Ele olhou. Ainda se lembrava de quando se conheceram, na dança das cadeiras. Do seu bailar. Do seu toque. Das suas risadas. Não, deveria haver uma forma de salvá-la! Mas o Trono já estava próximo, e as chamas envolviam sua sombra como um demônio eclipsante. Banqueta disse:

— Você tem de me soltar. Ele vai te matar!

— Não posso.

— Você pode, você deve!

— Eu não consigo, não posso te perder, amor.

— Você não vai. Enquanto tiver um pé para navegar, haverá vida. Estarei contigo, senão aqui, então no céu. Mas quem cuidará de nosso Bercinho? Eu seria uma péssima mãe, sempre fui afobada e louca por aventuras, mas você, você é o único tesouro que jamais precisei desenterrar.

Cadeira não segurou as lágrimas, uma cachoeira de pingos a mergulhar no abismo. A risada maquiavélica de Trono já denunciava o quão próximo deles o inimigo estava, mas havia amargura e até inveja em sua voz quando disse:

— Que bonitinho, é uma pena que seu filhinho fique órfão tão cedo. Mas não se preocupem, se eu achá-lo, farei dele um soldado de verdade, e não um vagabundo que só pensa em navegar por mares distantes, onde coisas ainda mais estranhas que nós nos usam como se fôssemos nada. Até mais… O quê! Ai, ai, alguém tira esse bicho de mim!

Para-raio arranhou toda a porcelana de Trono, dizendo “Até mais, até mais”. Banqueta viu sua oportunidade. Com a última lixa que tinha, apoiou-se no pé traseiro esquerdo de Cadeira, e o rebentou, mas não sem antes dizer:

— Eu te amo, Cadeira.

Cadeira arfou enquanto Banqueta fechava os olhos e mergulhava ela mesma no berço da morte. Quando voltou para si, Cadeira, com somente um pé, voou contra Trono, jogando-o no fogo.

Os gritos do rei ecoaram pela cidade, e o povo urrou de alegria, enquanto nobres eram perseguidos pelos trabalhadores. Dos poucos caramanchões restantes, a maioria teve de lidar com a revolta.

Com Para-raio em seu ombro, Cadeira observou o caos instaurando-se na cidade e, de coração partido, decidiu que dali por diante, dedicaria sua vida ao filho.

Eu estava terminando de escrever a épica história de meu capitão quando Bercinho apareceu:

— Papai, papai, o que tá fazendo?

Cadeira abriu um sorriso e olhou para mim:

— Contando sobre minhas aventuras, eu sei, eu sei, ei, ei…

— Tu sabe, tu sabe, abe, abe, abe! — Bercinho me tirou uma risada, e de toda a trupe de almofadas que trabalhava no convés.

— Capitão — disse eu — acho que é isso.

E que bom que terminei a tempo, pois o Triângulo das Mesudas já estava diante de nós! Cadeira foi para o leme, e não pude deixar de perguntar:

— Ah, mais uma coisa, capitão.

— Sim?

Para-raio ecoou “sim, sim” enquanto deslizávamos em direção à tempestade. Então falei:

— Achei que o senhor fosse pôr o pé no freio, então por que estamos indo para o Triângulo das Mesudas?

Ele pareceu pensativo durante algum tempo. Bercinho e Para-raio brincavam no convés quando ele me disse, observando-os:

— Durante muito tempo segui o que Banqueta me pediu. Mas a madeira dela corre nele também, eu sei, eu sei, ei, ei, ei! Fiquei triste, por muito tempo só, e me perguntei por que me casei com ela. Foi quando vi nosso filhinho crescendo que entendi.

— E o que foi que entendeu, capitão?

— O que Trono me disse, eu pensei muito sobre aquilo. Se eu quero que Bercinho seja melhor que nós três, não posso protegê-lo do mundo. Eu sei, eu sei, ei, ei, ei.

— E como vai protegê-lo, então?

— Não posso protegê-lo da morte. Mas posso protegê-lo de ter uma vida sem o arrependimento que tive.

— E qual é?

— O de fingir viver antes mesmo de morrer. Nossa vida sempre foi aventura, e a dele também será, rá! Disso sim irei protegê-lo, da chatice! Agora, volte ao trabalho, temos um mar perigoso pela frente!

Você não tem permissão para enviar avaliações.

Avaliações

1 avaliações encontradas.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

*Texto revisado ao final.

PLOT:

– Achei o conto muito bobinho e sem conexão de tom com algumas partes. O plot tem tanta coisa que, no fim, você não sabe contar a história.

– A história é gigantesca pra essa premissa. Dá pra cortar pela metade tranquilamente.

EXECUÇÃO:

– Os protagonistas são bem desenvolvidos, o antagonista não muito.

– A narrativa sofre muito com a falta de sinalização da mudança entre primeira e segunda pessoa (o narrador inicial fica mudando com a narração em primeira pessoa do capitão e isso, sem marcação nenhum, ficou… zoado!)

– A premissa é infantil, mas não foi escrito pensando nisso, o que gerou um texto estranho. A execução não acerta o nicho.

ESCRITA:

– Na minha revisão abaixo, fiz uma tonelada de correções na pontuação. Faltavam dezenas de vírgulas e havia algumas sobrando.
– Algumas confusões entre próclise e ênclise.
– Umas exclamações em momentos meio exagerados.
– Tem uns errinhos de concordância, como em “Vai queimar por tudo que fizeste!”.

– Muitas frases são difíceis de entender: “fizeram a morte de amante”, “cada golpe fazia serrotada parecer trovão” e algumas outras.

– O parágrafo que começa com “Você não vai. Enquanto tiver um pé para navegar…” não faz sentido. Parece que tem pelo menos duas falas misturadas.

– Esta frase também não tem sentido: “O de fingir viver antes mesmo de morrer”.

– Na verdade, muitas frases e expressões são só retórica, com zero sentido.

ESTILO:

– O texto tem muitas coisas interessantes, mas são exageradas (como o reforço do universo semântico, especialmente com as piadas e jogos de palavras).

– O conto tem algumas exposições e frases contando demais, fora de preparação, como em “Trono nem sempre foi mau”. Além disso, essa frase, por exemplo (assim como outras trocentas), tem umas 3 mil subordinações. Alguns parágrafos são difíceis de entender.

DESAFIO:

– Dá pra dizer que cumpre, mas não tão bem. O foco da narrativa não é o pé da cadeira. É, isso sim, um pretexto pra contar a história.
– Além disso, o desafio era para texto de até 5 páginas, mas passou muuuuuito longe.

TEXTO REVISADO

Para te contar esta história, eu até lhe pediria que se sentasse à cadeira, mas isso seria muito estranho, pois Cadeira é o meu capitão. Deste modo, peço-te que fique em pé ou ao chão se sente, mas não pegue uma almofada para a bunda! Isso seria ainda mais estranho, visto que Almofada sou eu, e não gosto de bundas em minha cara!

Claro, há muitas cadeiras pelo mundo, e almofadas de montão, mas a nossa tripulação é diferente de todos as outras mobílias velejantes a boiar por aí, pois Cadeira fez seu nome não pelos estofados que tem — e ele tem muitos —, mas pelo que pagara por cada um deles.

Como eu sei disso? Pois ele adora contar histórias e eu adoro escrevê-las! Nos mares serenos das rotas que tomamos antes de partir para o Triângulo das Mesudas, meu capitão insiste em tomar um excelente chá de cadeira.

O “Para-raio”, como Cadeira chama seu papagaio, mexe a cabeça assim, bem doido, pois participou de quase todas as aventuras com o dono. Certa tarde, eu lhe perguntei:

— Capitão, tem um minuto?

  O Para-raio ecoou “minuto, minuto” e o capitão me encarou com um olhão:

— Rá! Tenho até dois!

Poxa vida, como eu escreveria uma história tão épica em apenas dois minutos!? Tive que dizer:

— Na verdade, capitão, eu estava pensando se poderia ser um pouquinho mais…

“Mais, mais”, o papagaio dizia enquanto ele me encarava; estufei o peito e continuei.

— O senhor já teve quantos pés?

Ele riu e bebericou o chá de cadeira. Parecia geladinho. Depois de um gole, exortou:

— Tive quatro! Eu sei, eu sei, ei, ei, ei!

— E também dois olhos, não?

“Olhos, olhos”, disse o Para-raio. Cadeira continuou:

— Sim, pois, certo dia, fui comprar um sofá, uma belezura de seda, assim, bem grande ó; e o comerciante, uma poltrona lazarenta, disse que eu não conseguiria comprá-lo, pois o preço era o olho da cara.

“Cara, cara”, o papagaio disse enquanto ele continuava.

— Aí eu fui lá e tirei o olho pra comprá-lo, rá! Tinha que ver a cara dele. Ficou tão assustado que me deu o sofá de graça.

Meu capitão é mesmo muito inteligente! Mas eu não podia deixar de perguntar:

— E para onde foi o olho, capitão?

Ele tirou o tapa-olho, mas o olho estava todo branco. Finalmente, Cadeira confessou:

— Fui colocá-lo de volta, mas pus ao contrário, aí fico vendo meus esqueleto todo agora!

  “Agora, agora”, Para-raio ecoou, e eu não pude discordar:

— Que genial!

— Rá! Eu sei, eu sei, ei, ei, ei!

Enquanto aguardava o capitão a apreciar o chá, pensei em voz alta sem querer:

— Se foi assim com o olho, imagina com o pé…

— Pois é…

— Ah, capitão, desculpe!

— Eu sei, ei, ei, ei! Perdi um, pois levei um pé na bunda, e eu nem tenho bunda, olha só! — E me mostrou a bunda, e de fato não tinha bunda! — O outro pé eu mesmo cortei numa luta.

  “Luta, luta”, o Para-raio disse, e eu exclamei:

— Uau! Mas por quê?

— Pra ficar em pé de igualdade com um capitão de outro navio, um tal de Canapé!

— E você o venceu!?

— Venci, pois, de tanto balançar, o sujeito dormiu!

Meu capitão é mesmo um gênio, não? Mas esperei a última aventura, e ela não veio. Ele estava sério quando perguntei:

— E o outro pé, capitão, como foi?

— Não era um pé qualquer. Era o meu pé traseiro, e o esquerdo ainda por cima.

“Cima, cima”, o papagaio tagarelou, e não pude deixar de ponderar:

— E o que o pé traseiro esquerdo tinha de especial?

Ele balançou o chapéu, como se a brisa lhe fosse levar as mágoas. Não levou. Disse, enfim:

— Tu não sabes, Almofada? Quando uma cadeira se casa com outra, no Cadeirismo, o anel de cadeirante é posto no pé esquerdo traseiro para que, em frente ao Encosto, as almas dos amados jamais fiquem empenadas! Eu sei, ei, ei, ei.

— Ó, capitão, então este é o pé que levaste na bunda?

— Não, Almofada. Este, na verdade, foi o que me fez pôr um pé no freio. Eu sei, eu sei, ei, ei, ei…

O convés ebulia com o encontrar dos sabres. Cada lâmina, um serrote flexível que mais parecia trovão, e trucidava ripa, estofado, fazendo jorrar farpas naqueles que pregavam uns aos outros em feroz embate.

Mas dentre todos os bancos, Cadeira era o mais ousado. Mesmo bamboleando, seu papagaio caía com tudo nos inimigos, tirando deles seu serrote, deixando-os à maré da fúria do capitão.

Mas ainda mais lendária que Cadeira era sua esposa, Banqueta. Diferente de Cadeira, ela era alta, e seu quadril hipnotizante era uma giratória que fazia rodopiar as lixas que davam tanta gastura ao adversário, que ele soltava as espadas somente para tapar os ouvidos.

Juntos, eles eram implacáveis. O capitão pirata do outro lado, um armário a tamborilar no convés, embalando almofadas e bancos com abraço mortal, finalmente encarou marido e mulher:

— Então este é o tal do casal cadeirado de que tanto ouço falar!

Interpondo-se entre Armário e seu marido, a bailarina mortal interrompeu sua dança. Cadeira disse:

— Banqueta, eu já te disse que não preciso de prote…

— Calado! — Banqueta era bem irritadiça. — Ou não vai ter ninguém para te passar óleo de peroba mais tarde.

Cadeira não pôde objetar, pois óleo de peroba era o seu fraco. O Armário riu, arreganhando as portas de sua boca como uma caverna, uma arcada de cabides tortos a tiritar:

— Pelo visto, essa banqueta faz tu de balanço, Cadeira! Desde quando tu decidiu que amor valia a pena?

Mas o que Armário não viu foi que Banqueta já iniciava seu espetáculo, e sua dança fazia “tumbala-catumba-tumba-tá”! Seus golpes eram tão rápidos que Armário mais parecia encomenda em frete barato. Por pouco que ele não vira caixão. Armário exortou, embasbacado:

— Que tipo de marcenaria é essa!?

Não havia nada que ele pudesse fazer. Seus capangas já estavam empenados ao chão e Para-raio já bicava o leme do navio inimigo. Armário se arrastava para longe, mas Banqueta era implacável até em linguajar:

— Esta marcenaria, Banqueta, é de um tipo que você nunca poderá entender! Enquanto você e seus móveis imperiais usam da mobília dos pobres ao seu bel-prazer, nós a regamos, semeamos e confeccionamos com mui esmero. Pelo que fizeste à minha irmã, farei você desejar que tivesse sido uma horda de cupins, e não eu, a te matar.

Cadeira pôs seu pé no ombro de Banqueta, tentando acalmá-la:

— Querida, acho que ele já aprendeu a missão. A trupe das almofadas é pra lutar contra a Mobília Imperial, e não se tornar como ela, não se lembra?

Banqueta gentilmente lhe tirara o pé do ombro, mas seu olhar permanecia destemido:

— Meu marido está certo, Armário, para o meu azar e sua sorte. Mas se quiser sair boiando por aí ao invés de se transformar em ripas para casinha de papagaio — “Papagaio, papagaio”, disse Para-raio ao longe —, vai ter que me dizer quem te mandou aqui e onde ele está!

Cadeira já suspeitava da resposta e de que sua esposa somente o perguntara para confirmar os boatos. Armário se tremia tanto que mais parecia um varal quando disse:

— Foi o Trono! Ele ameaçou cortar o estofado de todo mundo que se negasse a cumprir uma de suas ordens. Eu disse que traria vocês diante dele somente para que ele fizesse uma grande fogueira e queimasse vocês, assim bem quente ó.

Pelo olhar de Banqueta, Cadeira pressentiu o pior. Quando a esposa subiu nas pilhas de inimigos e se dirigiu à tripulação, ele sentiu as farpas do corpo arrepiando:

— Ouviram, almofadas? Queriam nos jogar em fogueira! Eles usam nossos corpos de carvão, sendo que aqueles que construíram as lareiras que aquecem suas ossadas foram ninguém menos do que nós mesmos!

As almofadas, empolgadas demais para terem bom senso, jogaram a si mesmas no ar, com gritos de ultraje e desafio. Como não havia ninguém para segurá-las, Para-raio teve que pescá-las do mar. Banqueta continuou:

— Mas assim como o céu, o mar é para todos. E já que insistem em nos perseguir, vamos mostrar o que acontece quando se senta onde não deve!

— Nossa! — exclamei. — Ela era assim mesmo, capitão?

— Era tudo isso e mais um pouco. Era pau pra toda obra. Eu sei, eu sei, ei, ei, ei.

— E o que se seguiu?

A cadeira de salva-vidas já anunciava a chegada do navio de Armário de volta ao Porto dos Móveis, onde Trono aguardava ansiosamente a chegada de sua encomenda. Diferente do que muitos achavam, Trono fedia, pois, na verdade, era de uma família muito antiga, as Latrinas, que chegaram ao poder por afundar seus adversários em esgoto.

Trono mandou construir uma pira no alto de sua torre, para que todos os cidadãos do reino de Madeirasa pudessem ver o casal de renomados piratas arder. Trono nem sempre foi mau, mas quando Banquinho, a irmã de Banqueta, recusou-se a sair com ele e o buquê de flores que ele pedira para entregarem em seu jardim, foi amassado por ela, com o recado de que ele jamais mereceria ser amado. Trono aceitou seu desafio.

Como recompensa, mandou substituir as flores por sementes de urtiga e plantá-las ao redor de sua residência. Assim, ela não cheiraria nenhuma outra flor. O que ele não sabia era que ela era alérgica, e não tardou para que lixasse a si mesmo até não sobrar nada.

Um arauto adentrou o topo da torre. Para evitar caretas, Trono ordenou que todos os súditos de seu palácio usassem pregadores no nariz; assim, não teriam de lidar com seu cheiro. Por isso, todos tinham a voz fanha ali. O caramanchão disse:

— Majestade, Armário acaba de chegar ao porto com os cativos.

Trono disse, ajeitando sua coroa (uma tampa de privada):

— Obrigado, Caramanchão. Pode mandar Armário trazê-los.

Aquiescendo, o Trono aguardou. A cordinha da descarga, seu único fio de cabelo, estava trançada de modo que imaginou como seria se estivesse escondida num chapéu de pirata. Mas não! Não poderia ingressar nessa vida, pois nada era mais fedido que a brisa do mar.

O caramanchão anunciou a chegada dos prisioneiros, e assim que Cadeira e Banqueta entraram, acompanhados de Armário, Trono se deliciou com suas caretas de nojo. O que lhe surpreendeu foi o arregalar dos olhos de Armário, que nunca lidou para tais futilidades. Amarrados do jeito que estavam, suas feições não eram as de cativos, e por isso ralhou:

— Parece que a “Trupe das Almofadas” precisa de costureiras. Rá, rá!

Se bem que ele não vira mais nenhum integrante da tripulação de Armário. Mas isso não importava tanto quanto o que Armário estava prestes a dizer:

— Como prometido, Tronestade, trago-lhe os cativos.

E se ajoelhou diante de si, e de tão grande que era, tampou a visão que Trono tinha de Cadeira e Banqueta. Mas como rei justo, Trono disse:

— Muito bem, Armário. Como recompensa por tua nobre empreitada, dar-lhe-ei um guarda-chuvas. Assim, além de guarda-roupas, poderá se proteger da água que cai do céu!

Armário até chorou quando ouviu isso. Chorou que nem uma gavetinha. Trono gostava dele, mas aquilo já era demais:

— Ora, não é para tanto! Não precisa chorar, também. Sou um bom rei, não sou?

Soluçando, Armário disse:

— E-e-eu sei, Tronestade. E sinto muito…

— Pelo quê?

Mas quando Armário saiu do caminho, Trono gritou:

— Seu traidor! Caramanchões, matem-nos!

Cadeira e Banqueta estavam soltos, e antes que destronassem o rei, Trono pulou sobre Armário habilmente. E o pau torou. Os mais habilidosos cavaleiros contra os mais habilidosos piratas fizeram a morte de amante, e cada golpe fazia serrotada parecer trovão.

Armário chorava enquanto Trono se protegia de Para-raio, que, de repente caiu dos céus segurando uma almofada flamejante. Trono reconheceu um dos membros da tripulação de Armário e deu uma descarga no capitão traidor tão poderosa que o brutamontes caiu na pira. Antes que pudesse gritar, a almofada flamejante caiu em sua boca e Trono, esperto que era, pegou o guarda-chuvas para se proteger.

Mas Banqueta era implacável e dava piruetas de lá para cá, tentando alcançar o Trono:

— Admita, você a matou! Engavetou-a!

— Eu não fiz por querer! — exclamou Trono. — Eu não sabia que ela era alérgica.

Mas Banqueta parecia uma víbora venenosa. Sua lixa atravessava os caramanchões despreocupadamente, enquanto Cadeira cobria a retaguarda de sua amada.

— Agora, seu fedorento! — as chamas já lambiam a pira quando Banqueta o flanqueou, forçando-o contra a imensa pira. — Vai queimar por tudo que fez!

Trono sentiu o beijo do fogo corroendo sua privada. Se ao menos tivesse um bidê funcional, poderia conter a conflagração, mas decidiu desde cedo que jamais se envergonharia de seu aroma, por isso escangalhou a ferramenta.

— Jamais conseguirão escapar — exclamou Trono. — Há guardas por toda parte da cidade!

E era verdade. Mas diferente de Cadeira, Banqueta não parecia ter medo de morrer. Trono não cederia sua vida sem uma luta, e seria tão árdua quantos as brasas que agora lhes envolviam. Para-raio caía de um lado para o outro, atrapalhando os caramanchões de ajudarem seu rei.

Frente a frente, Trono e Banqueta se prepararam. O rei ajustou o guarda-chuvas, desarmando-o e segurando sua ponta afiada contra a usurpadora. As últimas luzes de um céu poente encontraram o metal, despejando luz sobre aqueles que prometiam a escuridão eterna uns para os outros. Lá embaixo, o povo gritava, sem saber o que acontecia. Lá em cima, Trono anunciava o começar da luta:

— En garde!

Lixa e lâmina se encontraram, e a aspereza de seus golpes fez faíscas arrefecerem como vaga-lumes de brasa num mar de fogo, que dançava com o vento, à medida que a morte tecia sua música.

— Admita! — exclamou Banqueta, incidindo botes mortais. — Você a matou! Engavetou-a!

Mesmo que ela fosse lutadora feroz, já estava cansada de tantas batalhas em um dia, mas Trono fez por merecer seu título. Invés de ingressar na dança de Banqueta, ele manteve a luta a seu ritmo, e toda vez que ela tentava dar o bote, ele a espetava de tal jeito que ela tinha que recuar para não cair nas chamas.

Finalmente, identificou os padrões de ataque da adversária e fingiu baixar a guarda. Quando ela tentou lixar sua porcelana, ele enrolou a cordinha da descarga em seu quadril, trazendo-a para perto de si:

— Quer saber, Banqueta? Pensando agora, mesmo que sem querer, valeu a pena matar tua irmã somente para ver a tua cara de decepção, pois diferente dela, você não merece a vida que tem!

Cadeira gritou, enquanto lutava contra caramanchões que o haviam cercado:

— Banqueta, não!

Invés de jogá-la para a pira, sabendo que Banqueta possuía um quadril giratório, Trono deu um puxão na cordinha que a enlaçava, fazendo-a girar de tal forma que foi atropelar os caramanchões restantes e tombar na beira da torre. Cadeira saltou, deslizando sobre o chão até alcançar sua amada, segurando-a com o seu pé esquerdo traseiro. Disse:

— Aguenta firme, amor!

  Trono estava só, pois todos os caramanchões restantes estavam tombados, queimados ou depenados, mas o rei fez questão de empunhar seu guarda-chuvas enquanto caminhava na direção de Cadeira:

— Sabe, Cadeira, durante todos esses anos em que cacei você e essa tua trupe mesquinha de almofadas, eu nunca achei que você seria tão tolo de se casar com alguém da ralé dessa banqueta.

Cadeira fazia de tudo para segurá-la. Banqueta tinha lágrimas nos olhos quando disse:

— Amor, olhe para mim!

— Eu vou te puxar… — Cadeira não aguentava mais, mas tirava forças de sua fé, o Cadeirismo, para continuar. — Eu vou conseguir!

— Olhe para mim, amor!

Ele olhou. Ainda se lembrava de quando se conheceram, na dança das cadeiras. Do seu bailar. Do seu toque. Das suas risadas. Não, deveria haver uma forma de salvá-la! Mas o Trono já estava próximo e as chamas envolviam sua sombra como um demônio eclipsante. Banqueta disse:

— Você tem de me soltar. Ele vai te matar!

— Não posso.

— Você pode, você deve!

— Eu não consigo, não posso te perder, amor.

— Você não vai. Enquanto tiver um pé para navegar, haverá vida. Estarei contigo, senão aqui, então no céu. Mas quem cuidará de nosso Bercinho? Eu seria uma péssima mãe, sempre fui afobada e louca por aventuras, mas você, você é o único tesouro que jamais precisei desenterrar.

Cadeira não segurou as lágrimas, uma cachoeira de pingos a mergulhar no abismo. A risada maquiavélica de Trono já denunciava o quão próximo deles o inimigo estava, mas havia amargura e até inveja em sua voz quando disse:

— Que bonitinho! É uma pena que seu filhinho fique órfão tão cedo. Mas não se preocupem, se eu achá-lo, farei dele um soldado de verdade, e não um vagabundo que só pensa em navegar por mares distantes, onde coisas ainda mais estranhas que nós nos usam como se fôssemos nada. Até mais… O quê! Ai, ai, alguém tira esse bicho de mim!

Para-raio arranhou toda a porcelana de Trono, dizendo “Até mais, até mais”. Banqueta viu sua oportunidade. Com a última lixa que tinha, apoiou-se no pé traseiro esquerdo de Cadeira, e o rebentou, mas não sem antes dizer:

— Eu te amo, Cadeira.

Cadeira arfou enquanto Banqueta fechava os olhos e mergulhava ela mesma no berço da morte. Quando voltou para si, Cadeira, com somente um pé, voou contra Trono, jogando-o no fogo.

Os gritos do rei ecoaram pela cidade e o povo urrou de alegria, enquanto nobres eram perseguidos pelos trabalhadores. Dos poucos caramanchões restantes, a maioria teve de lidar com a revolta.

Com Para-raio em seu ombro, Cadeira observou o caos se instaurando na cidade e, de coração partido, decidiu que dali por diante, dedicaria sua vida ao filho.

Eu estava terminando de escrever a épica história de meu capitão quando Bercinho apareceu:

— Papai, papai, o que tá fazendo?

Cadeira abriu um sorriso e olhou para mim:

— Contando sobre minhas aventuras! Eu sei, eu sei, ei, ei…

— Tu sabe, tu sabe, abe, abe, abe!

Bercinho me tirou uma risada, e de toda a trupe de almofadas que trabalhava no convés.

— Capitão — disse eu —, acho que é isso.

E que bom que terminei a tempo, pois o Triângulo das Mesudas já estava diante de nós! Cadeira foi para o leme e não pude deixar de perguntar:

— Ah, mais uma coisa, capitão.

— Sim?

Para-raio ecoou “sim, sim” enquanto deslizávamos em direção à tempestade. Então falei:

— Achei que o senhor fosse pôr o pé no freio, então por que estamos indo para o Triângulo das Mesudas?

Ele pareceu pensativo durante algum tempo. Bercinho e Para-raio brincavam no convés quando ele me disse, observando-os:

— Durante muito tempo segui o que Banqueta me pediu. Mas a madeira dela corre nele também, eu sei, eu sei, ei, ei, ei! Fiquei triste, por muito tempo só, e me perguntei por que me casei com ela. Foi quando vi nosso filhinho crescendo que entendi.

— E o que foi que entendeu, capitão?

— O que Trono me disse… eu pensei muito sobre aquilo. Se eu quero que Bercinho seja melhor que nós três, não posso protegê-lo do mundo. Eu sei, eu sei, ei, ei, ei.

— E como vai protegê-lo, então?

— Não posso protegê-lo da morte. Mas posso protegê-lo de ter uma vida sem o arrependimento que tive.

— E qual é?

— O de fingir viver antes mesmo de morrer. Nossa vida sempre foi aventura, e a dele também será. Rá! Disso, sim, irei protegê-lo: da chatice! Agora, volte ao trabalho, temos um mar perigoso pela frente!