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Cadê a mãe?

João caminhava pelo corredor do postinho de um lado ao outro com Sofia nos braços. A menina de dois anos agarrada ao seu pescoço, deixava escapar gemidos abafados de dor. Ele a segurava com firmeza, mas hesitação nos movimentos. Calma, nenê.

As enfermeiras o olhavam. Olhavam-se. Não diziam nada.

João ainda pensava se meia hora antes, na recepção, havia sido indelicado pela forma como chamara a atenção da recepcionista. “Minha filha está com cólica e meio febril”, sem um “boa tarde” ou qualquer coisa parecida.

De frente para o balcão alto demais para Sofia, quando ajeitou a filha no quadril esquerdo, ela agarrou sua camisa e o olhou com olhos grandes e úmidos.

Os olhos da mulher passaram rapidamente por João, depois por Sofia, num movimento quase imperceptível. Ela abriu a boca, mas a pergunta “óbvia” não saiu. João pegou a sutileza com que uma sobrancelha ergueu e baixou num piscar de olhos. Ela assentiu e digitou o relato no computador.

— Pode preencher aqui?

— Sim, claro.

Na sala de espera, antes de começar a andar de um lado a outro, viu algumas mães com olhares discretos e sussurros contidos. Sentiu o peso.

Sofia encostou a cabeça em seu ombro, quieta demais para uma criança de dois anos. Pesada demais para uma criança de dois anos.

Quando a médica os chamou, João entrou sem rodeios. Sofia tinha os dedinhos agarrados à gola da camisa do pai.

— Pode me contar o que está acontecendo?

João contou sobre a cólica, a temperatura e os choros noturnos. Falava como quem presta contas, cada palavra uma desculpa. Sofia permanecia em silêncio, observando.

Na maca branca, a médica examinou a menina. Ela não chorava, só queria o pai.

— Ela costuma ficar assim?

— Não, nunca ficou.

— A vacinação dela tá em dia?

João puxou na memória e não fazia ideia. O rosto ruborizou. A nova fase da vida lhe dera perspectiva, não perfeição. Mas levou aquele lapso como uma grande derrota. Ao menos, carregava a carteirinha junto com os documentos de Sofia. Procurou-a na bolsa. Lá no fundo, ainda havia vestígios de uma época onde tudo era diferente, mais simples. Menos doloroso.

Letras como aquelas haviam se tornado miúdas demais depois dos quarenta.

— Me desculpe, pode ver pra mim?

A médica era nova, não precisava de óculos ainda. Verificou as datas e fez uma cara que João não gostou.

— É… olha, tem uma vacina pendente mesmo.

— Meu Deus. Será que…

— Fica calmo, não tem nada a ver com esses sintomas, não. Mas era bom passar na outra sala ali pra já deixar tudo em dia.

— Vou fazer isso. Mas o que ela tem e o que eu faço?

A primeira sugestão da médica foi descartada por João. Uma pressão extraiu algo mais… profissional, menos SUS.

O celular tocou; pôs no silencioso. Da sala ao lado, podia-se ouvir o som de choro infantil. Uma angústia ameaçava os visitantes das paredes brancas e estéreis. João parou à porta, com os batimentos acelerados e atos que diziam o contrário à filha.

A enfermeira acenou para que entrasse. Com um movimento decidido, João puxou a porta e sentiu a tensão do momento. Sofia, ainda no colo, não sabia o que a aguardava. Ela percebeu o olhar assustado do pai. A voz de Sofia quebrou o silêncio:

— Tá tudo bem?

A frase copiada das falas do pai afundou seu coração. Sentiu-se impotente. Inclinou-se para ela, testa com testa.

— É só uma picadinha, meu amor. Vai doer um pouquinho, mas depois já passou, tá bom?

Ele tentava soar firme, mas a doçura de Sofia em seus olhos o fazia querer protegê-la de tudo.

— Não, eu não quero, não, papai. Não quero, não.

Ela balançava a cabeça negativamente e seus olhos refletiam medo.

— Vai ser na cocha, ok? — disse a enfermeira.

— Vamos na casa da vovó agora?

A inocência da criança a tornava ainda mais frágil.

— Agora não dá. A gente tem que tomar a vacina, tá?

A enfermeira se aproximou, com a seringa em mãos. Sofia olhou para ele, seus olhos cheios de desespero. “Papai, não quero!” A súplica era um golpe em seu coração. Ele segurou seu rosto com as mãos.

— Eu tô aqui, princesa. Tô com você, tá?

— Pra sempre…

Outra frase ouvida muitas vezes. A enfermeira se comoveu.

João, segurando firme a mãozinha delicada, deu sinal à desconhecida de branco. Os olhos da filha arregalaram, mas ela não tentou escapar. Apenas perguntava ao pai o porquê daquilo, por que estava fazendo aquilo com ela.

O aperto da angústia dentro de si lutava contra a segurança que tentava transmitir. “Um, dois, três…” e antes que pudesse completar, a agulha já havia entrado e saído.

— Pronto, já acabou, nenê. Eu te amo, tá?

Quando começou a chorar, o som rasgando seu peito como uma lâmina. Ele a trouxe mais para perto, envolvendo-a nos braços como um escudo contra o mundo.

— Você é muito corajosa, meu amor.

— Você machucou a minha perna.

As palavras saíram enquanto a balançava gentilmente, acalmando o coração temporariamente partido.

Do posto, foram para a casa da vovó, mãe de João. Um prêmio pela coragem, como ele disse. E um minuto para respirar. Não fez as antigas piadas, não atazanou o pai por não querer fazer exercícios, nem comentou sobre seus filmes fuleiros; não comentou o excesso de açúcar que a mãe pôs no café em sua própria xícara. Não sorriu.

No caminho de volta para casa, Sofia adormeceu. João olhou pelo retrovisor, viu o reflexo da filha no banco de trás. Seu rosto era idêntico ao de Priscila. O resto do breve trajeto foi longo.

Em casa, deitou Sofia em sua cama. Os ursos de pelúcia eram testemunhas silenciosas. Um deles, um coelho marrom, tinha um laço que Priscila havia costurado um ano antes.

A foto do episódio ridículo e memorável na praia, que havia virado piada, não estava mais na estante. O espaço do porta-retratos ainda estava lá. Será que eu vou dar conta?

O telefone vibrou, interrompendo a sensação que quase o tomou. A mensagem era de sua irmã, Mariana: “Quer que eu passe aí mais tarde?”

João digitou e apagou três respostas antes de escrever: “Estamos bem”.

“De novo isso? Você não é assim. Deixa eu ajudar um pouco”

À noite, o relógio marcava 23h30 quando Sofia acordou com outra cólica. João a embalou no colo e cantarolou uma melodia que antigamente parecia engraçadinha, e que o entristeceu.

Às três da manhã, quando Sofia tossia pela terceira vez, parecendo se engasgar, João se levantou antes mesmo do primeiro pigarro completo. Xarope, termômetro, água: tudo preparado em segundos. Movimentava-se pela casa sem ter certeza do que fazer. Sofia, com olhos meio abertos, nem chorava, nem reclamava. E a noite seguiu.

O sono fragmentado, interrompido por súbitas idas ao berço para ver se estava tudo bem, não foi suficiente para acordar com tanta disposição quanto a filha. Papai, papai… ouviu baixinho no ouvido às 5h. Quero ir na sala. O berço com meia lateral aberta era uma bênção — às vezes.

O sábado costumava ser difícil, mas memorável. Depois do primeiro desenho da Disney, João olhou para a pia. Três xícaras sujas, duas panelas, a frigideira com restos de ovo queimado. 6h23 e já estava exausto. Respirou fundo. Sofia, sentada na cadeirinha, mexia distraída nas torradas.

Tentou se lembrar de quando havia sido a última vez que tomara seu café sem preocupações. Enquanto lavava a louça, Sofia mantinha sua atenção no segundo desenho, sem parar de falar e com seus olhos grandes acompanhando os movimentos do pai. Um prato escorregou de suas mãos e quebrou. Sofia não se assustou, apenas piscou.

O dia avançou com palavras novas, desenhos mesmos, duas ligações não atendidas, peças de montar, fraldas, choros e risadas.

Sempre a mesma luta para convencer a entrar no banho. Sempre a mesma luta para convencer a sair do banho. Depois de pôr a roupa em Sofia, tentando afastar outros pensamentos, apertou suas bochechas, com o rosto bem próximo.

— Você é linda!

A resposta foi difícil de entender.

— Tira a chupeta. Isso. Fala de novo.

— Você também é lindo, papai.

— Ah, obrigado, nenê.

Sofia não viu quando os olhos do pai molharam.

Por fim, Sofia apagou.

A luz do notebook azulada iluminava seu rosto. Relatórios para terminar, contas para pagar. Sofia capotada no sofá, estava enrolada no cobertor cor-de-rosa, ainda o mesmo escolhido um ano antes por Priscila. Cada vez que digitava, João olhava a filha e verificava se respirava. Às vezes, Sofia se mexia e murmurava algo dos sonhos ou pesadelos. João parava de trabalhar. Esperava. Voltava a digitar quando ela sossegava.

O domingo repetiu o almoço em família na casa dos pais. Seu pai evitava olhá-lo diretamente. A mãe servia mais comida no prato de Sofia. Mariana tentava puxar conversa e João a respondia com monossílabos. Sofia não podia ficar um segundo sem falar.

— Vovó, o vovô jogou a vovó no lixo. Muito feio!

— Como é?

O pai de João sorriu pela primeira vez desde que se sentara à mesa.

— Ela deve ter sonhado — disse João.

— Ah, é? — a avó deu trela. — E o que mais o vovô fez?

— Ele tá comendo. Ele… ele… o vovô tá comendo.

João só deixou sair:

— Eu amo vocês, viu?

Seu pai foi quem se adiantou para quebrar o silêncio de um segundo:

— Ah, mas é o mínimo que eu espero!

As risadas não deixaram a sensação boa ir embora.

E João lembrou-se de outra coisa:

— Terça é feriado. Dá pra eu trazer ela aqui?

— Claro que dá! — sua mãe respondeu.

— Eu tenho que ver as coisas lá.

A mão do pai sobre o seu ombro substituía uma resposta falada.

E o domingo ainda tinha suas demandas. De volta à sua casa, João pensava no que faria para o jantar, enquanto a aspiração do tapete formava um zumbido que fazia Sofia tapar os ouvidos.

A filha brincava no canto da sala, com seus brinquedos dispostos em uma geometria que só ela compreendia. Os blocos de madeira formavam estruturas impossíveis de um castelo e… coisas. João observava de soslaio, sem interromper o universo particular construído em silêncio.

Na pia, as infindáveis testemunhas mudas de mais uma semana que se encerrava. O notebook aberto aguardava respostas aos e-mails do trabalho, mas João adiava sistematicamente.

Um bloco desajeitado fez todo o resto desmoronar. O resmungo da filha pareceu, por um instante, prenunciar um ataque de choro ou algo pior. Quando João finalmente se aproximou, Sofia já estava reconstruindo a estrutura. O bloco caído foi arremessado, recebendo toda a culpa, para então ser buscado segundos depois.

A tarde continuou. Blocos, louça, e-mails, Sofia, João, amanhã tem escolinha, banho, sonho, sonhos.

Os dias seguintes foram melhores. A cólica passou, a febre sumiu. João levava Sofia à creche, a buscava, preparava as refeições — tudo com precisão cirúrgica. Talvez as únicas atividades que fazia sem seu jeito atrapalhado.

Uma tarde, na reunião de pais na creche, João percebeu os olhares, entre julgamentos e a pergunta não feita.

Uma das professoras, gentil mas direta, perguntou se estava tudo bem.

— Tudo bem, graças a Deus.

A resposta, ouvida também por outros ouvidos atentos, pareceu ficar no ar, frágil qual bolha de sabão.

Chegado o horário, as crianças foram trazidas. A roupa de Sofia estava torta; o zíper da jaqueta, mal fechado, mas João só percebeu quando já estavam no mercado. Algumas senhoras o olharam. Não disse nada. Parou, chamou Sofie e reorganizou a roupa entre as prateleiras de biscoitos e leite. Sofia esperava, impassível — um favor enquanto o observava. Ele sabia. Ela entendia mais do que se poderia imaginar.

Naquela noite, enquanto trocava Sofia, pensou no que a filha seria; como se sairia sem ele, já com quarenta e poucos.

Sofia crescia. Quieta. Observadora. Os olhos perguntavam sem fazer perguntas.

E João seguia. Um pai. O pai.

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