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As Sessões

Paciente de segunda-feira chega, mexe no sofá e diz:

— A perna esquerda está bamba.
— Se preferir pode sentar no divã.
— O sofá serve.
— Acho que a perna está boa.
— Não está.

Paciente de terça-feira olha o relógio, mexe na gravata, sorri, senta no divã, nada diz e o psiquiatra pergunta:

— Dia difícil?
— Nem penso nisso. Quero dizer, o que acontecerá se eu começar a fazer um ranking dos meus dias ruins?

Paciente de quarta-feira:

— Não pode fumar aqui.
— Aprendi a fumar por aí, na vida.
— Não pode fumar aqui.
— Se eu acender vai chamar a polícia?
— Quer que eu chame a polícia?
— Tem que se perguntar o que chega mais rápido: a polícia ou eu.
— Quer discutir isso?
— Rá!

Paciente de quinta-feira, sentado no sofá, em silêncio, olhando para frente. O psiquiatra pergunta:

— Não vai falar algo?
— Estou aqui pois o juiz disse que para conseguir a guarda do meu filho eu tenho que estar aqui.
— E vai ficar em silêncio a sessão inteira?

Na sexta-feira é a vez do psiquiatra ser o paciente de outro psiquiatra:

— Após cada sessão me pergunto se realmente faço o bem.
— Se não existisse acha que seus pacientes viveriam melhor?
— É o que me pergunto.

*****

Paciente de segunda-feira entra na sala, hesita e novamente olha para a perna esquerda do sofá.

— Está tudo bem?
— Tem que ver essa perna.
— Gostaria de discutir esse assunto?
— Não.

Paciente de terça-feira tira a gravata azul, fica brincando com ela e por fim diz:

— São catorze degraus antes de chegar no andar do meu escritório. Daí abro um portão de ferro, é uma segurança a mais, dou 10 passos, viro à direita e é a segunda porta à esquerda. Abro a porta, acendo a luz, fecho a porta, abro a janela, olho pro escritório. Se a descrição foi chata é porque é mesmo. Mais um dia ruim.
Paciente de quarta-feira, falando de maneira displicente:
— Quando ando pelas ruas, em um dia qualquer, olho para as pessoas como se estivessem ali para morrer, vítimas em potencial, escolho quem eu poderia matar.
— É importante frear impulsos violentos.
— Será? É mesmo?

Paciente de quinta-feira entrou, sentou no sofá e está em silêncio desde o primeiro minuto:

— Sabe que está pagando para ficar em silêncio?
Ele olha de maneira indiferente para o psiquiatra.
O psiquiatra, agora paciente em uma sessão com outro psiquiatra:
— Há aqueles que me assustam, os que me odeiam, os que não se importam.
— Sim. Nesse trabalho há um pouco de tudo.
— Me identifico com alguns.
— É normal.
— Eu sei.
— Mas não pode deixar isso afetá-lo. Tem que se distanciar.
— Eu sei.
— Já pensou em tirar umas férias?

*****

Paciente de segunda-feira:

— Sinto-me sem evolução.
— Como assim?
— É como se eu estivesse preso em uma situação. Se fosse um filme seria a mesma cena rodando sem parar.
— Já pensou em escrever?
— Escrever uma carta para meu futuro eu? Já vi coisas assim, não sei.
— Apenas escreva o que quiser escrever.

Paciente de terça-feira, tentando explicar a própria situação:

— E é um lugar multiúso, tem outros advogados e profissionais liberais. Tem até um tatuador.
— Algo o incomoda?
— Todos parecem estar indo bem, se sentindo bem com suas próprias vidas, menos eu.
— Quero que nos próximos dias pense nas coisas simples do seu trabalho, encontre a beleza do ordinário e no ordinário.

Paciente de quarta-feira:

— Vindo para cá vi uma pessoa na frente de um beco ou viela, algo desse tipo. Ela poderia ser um alvo de ocasião. Ela era um alvo de ocasião. Mas eu tinha que vir para cá.
— Eu quero que vá até algum lugar com livros, escolha algum e leia sempre que tiver um impulso violento.
— Qual livro?
— Você escolhe.
— Todos os livros atrás de você…
— Sim?
— Você leu?
— Sim. Li, leio e provavelmente ainda lerei várias vezes.

Paciente de quinta-feira:

— No meu relatório constará seu silêncio.

Ele olha para as mãos e nada diz.
Psiquiatra, agora paciente:

— Estou tentando mais uma vez.
— Salvar seu trabalho?
— Não. Salvar meus pacientes.

*****

Paciente de segunda-feira na papelaria:

— Boa tarde. Tem papel?
— A4? A5? A3? Reciclado? Para desenho?
— Quero apenas um papel para escrever.
— Então quer um caderno?

Paciente de terça-feira chegando no fórum:

Ele conta os degraus, os passos, o tempo perdido na fila do detector de metais antes de conseguir entrar. Sente o cheiro de pó e suor, é o perfume do tribunal, é o odor de toda a humanidade. Paciente de quarta-feira na livraria:
— Tem pessoas que escolhem um livro pela capa.
— Inacreditável.
Ele olha com desprezo para as duas vítimas em potencial que conversam entre si e diz consigo mesmo: é claro que vou escolher um livro pela capa, que outro critério eu usaria? Paciente de quinta-feira, no fórum perante o juiz:
— Como está indo nas sessões?
— Bem.
— Sabe que receberei um relatório delas?
— E o meu filho?
— Veremos…

Psiquiatra, no sofá de outro psiquiatra:

— Como vai o trabalho?
E o psiquiatra descreve o que acha que o outro psiquiatra quer ouvir para deixá-lo em paz.

*****

Paciente de segunda-feira na sessão:

— Comprei um caderno.
— Mas escreveu alguma coisa?
— Não.
— Escreva.
O paciente de terça-feira não aparece no psiquiatra, prefere caminhar pelas ruas, evita um cliente chato numa esquina qualquer, entra no parque, senta num banco, está tão desanimado que nem chorar consegue.
Na volta ao trabalho vai ao fórum e ouve:
— O juiz vai decidir a qualquer momento.
— Faz 6 meses que está parado.
— Ele vai decidir em breve.
— Bom, vamos torcer. Quem sabe até a semana que vem.
— Isso. Mas essa semana vamos entrar em greve, então talvez demore mais um pouco…

Paciente de quarta-feira senta no sofá, parece calmo:

— Comprei um livro. Escolhi pela capa.
— Está tudo bem. Qual livro?
— 1984. Li vorazmente, me identifiquei com o personagem.
— Winston Smith?
— Não. O Grande Irmão. Eu quero ser o Goldstein.

Paciente está no escritório e liga pro psiquiatra:

— Doutor?! Não vou hoje. Surgiu um imprevisto.
— Sabe que vou fazer um relat…
— Sei. Sei.

Psiquiatra, na sua própria sessão:

— Tenho quatro clientes marcantes no momento. Um tenta se recuperar de trauma, outro odeia o trabalho, há um possível psicopata e outro que está sendo obrigado por um juiz em um caso de divórcio.
— É importante não se deixar influenciar pelos seus pacientes.
— Sim.

*****

Paciente de segunda-feira em casa, abre o caderno, pega uma caneta e tenta escrever:

Devo começar como? Era uma vez? Não sei. A folha em branco olha para mim. Quantos escritores escreveram sobre isso? É um clichê? Não sei.
Há, afinal de contas, problemas com clichês? Não sei, eles parecem explicar tantas coisas. Um clichê agora viria bem a calhar, mas não consigo pensar em nenhum.
Mas devo escrever, então escrevo.
Outro dia no parque, encontrei um amigo e tivemos uma conversa lacônica; ele, um desempregado, um sonhador, prestes a ir numa entrevista de emprego — aposto que foi reprovado, nada dá certo na vida dele.
Fiz uma piada sobre advérbios e ele retrucou estilhaçando meu coração.
Agora evito ir naquele parque, não quero encontrá-lo. Provavelmente não vou encontrá-lo, duvido que ele tenha conseguido o emprego. Mas, ainda assim, por via das dúvidas, não vou mais ao parque.

Paciente de terça-feira, sentado no sofá, sem pretensões:
— Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— É incomum.
— Faça.
— Como você lida ou lidaria com um possível psicopata com pensamentos homicidas?

O advogado se ajeita no sofá, o coração começa a bater mais forte, ele se transforma e como um vampiro ou um tubarão ou, até mesmo, um psicopata, ele fareja sangue:
— Enquanto ele pagar serei o melhor amigo dele. Está com algum problema?
— Apenas curiosidade.

Paciente de quarta-feira na delegacia:

— A última vez foi moleza. Agora vai ficar um bom tempo preso.
— É?
— Em um presídio de segurança máxima.
— Será que tem biblioteca nessa cadeia aí?
— Ahn?! Acho que sim. Que te importa?
— Antes eu vivia apenas minha vida, agora descobri que posso viver mais vidas. Posso até escrever um livro. Quem sabe? Prevejo um grande futuro para mim quando for solto…

Paciente de quinta-feira na frente da casa da ex-mulher:

— O que você quer aqui?
— Vamos deixar isso de lado? Briga, advogados, juiz, psiquiatra. Vamos resolver isso aqui.
— E como será?
— Apesar de tudo, confia em mim?
Ela sorri e diz:
— Sim.
— Começaremos à partir daí.

Psiquiatra em casa com a esposa:

— E você vai fazer o quê?
— Não sei. Mas psiquiatria não dá mais.
— Isso é muito vago.
— Eu sei, mas – ele hesita – não suporto mais qualquer coisa relacionada ao meu trabalho.

*****

Paciente de segunda-feira, em casa, escrevendo:

Agora que comecei a tomar gosto pela escrita, meu psiquiatra para de trabalhar.
Ligou para mim e disse que não irá mais atender, recomendou outros profissionais e desligou antes que eu pudesse falar sobre minha escrita.
Porém, sinto-me bem escrevendo. Já nem penso em algumas coisas que eu pensava antes, em outras penso menos.

Paciente de terça-feira, o advogado não consegue conter a excitação:

— Quero atenção total nesse caso. Ele foi preso com um livro, logo depois do ato, os jornais o chamam de “criminoso das letras” e nós somos os advogados dele. Colocando ele na rua o mais rápido possível atrairemos uma penca de clientes. Quero todo mundo aqui em cima desse caso. É prioridade total!

O paciente de quarta-feira, no pátio da cadeia:

— Quero todo mundo aqui me chamando de Grande Irmão. Eu sou o Grande Irmão de vocês. Eu sei tudo. E vocês sabem que eu sei tudo…

Paciente de quinta-feira, na rua, andando com o filho:

— E depois vamos no filme?
— Vamos. Mas combinei com sua mãe, então nada de atrasar.
O agora ex-psiquiatra, desolado, lendo as páginas policiais do jornal e conversando com a esposa:
— Foi bom parar.
— Acho que sim.
— Era isso ou hoje seria eu no noticiário.
— Sério?
— Acho que um psiquiatra que acaba matando seus pacientes acabaria fatalmente no noticiário.
— E quantos você gostaria de matar?
— Uns três.
— Ainda bem que parou então…

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Plot Execução Escrita Estilo Desafio

PLOT: Gostei. Daria um bom livro de umas 70 páginas.
EXECUÇÃO: Todos os personagens são muito bem desenvolvidos; temática também está bem desenvolvida (vários assuntos, inclusive); tem bastante subtexto, do jeito que a gente gosta kk; a trama se desenrola bem, com quase nada de texto dispensável (seria muito difícil enxugar mais, se precisasse); os arcos vão se fechando de um jeito muito bom também (e isso já tem a ver com o cumprimento do desafio). O maior problema é que, depois de algumas sessões, a repetição da fórmula começa a encher a paciência.
ESCRITA: Revisei bastante coisa.
ESTILO: Está boa a divisão interna; o texto é pouco literário, mas dá um tom consistente.
DESAFIO: Alguns arcos não estão muito claros, mas a maioria está excelente.