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As ilusões de uma Santa Lolita

Sabe qual a diferença entre a barbaria e o filistianismo? O Bárbaro, por mais troglodita que seja, é capaz de possuir ao menos uma virtude. De certa forma, o seu estado de extrema ignorância o leva a apegar-se aos poucos resquícios de humanidade e senso moral que lhe resta, fazendo-o dedicar excessivamente a eles, ao passo que entre os povos civilizados essas características são tão onipresentes que nos parecem esquecíveis. O refinamento de nossa cultura é nosso triunfo e nossa queda, da qual não se pode escapar, a menos que se trilhe o caminho do gênio. A genialidade é nosso fim último, que o homem e apenas o homem pode alcançar. “E a mulher?”, me perguntavam alguns. “E os sodomitas?” diziam outros. Nada! Para estes, nada há senão a mediocridade, ou pior, a morte. Se o destino lhe escolheu para existir enquanto um ente sórdido e indecoroso, sábio e prudente seria tirar a própria vida.

Não entendo por que tantos tolos insistem em manter-se em tamanha insignificância. Não seria melhor a honra do sacrifício!? Ou melhor, o prazer de superar a própria carne e alcançar a magnificência de um Mozart, de um Bismarck ou de um Beethoven!? Triste é para a fêmea, que mesmo se quisesse não poderia este caminho trilhar, pois em sua maldição está a passividade e a desorientação ética, pecando loucamente, muitas vezes sem nem saber disso. Como se fosse um bichinho fofo, ou uma criança malcriada, que inocentemente fere e desobedece seus amos, para no fim chorar pedindo perdão, afinal sua mente bisonha não a permitiu ver o quão boba e má estava sendo. Somente os resultados nefastos de suas ações é capaz de fazê-la ver. Nunca foi culpa dela, é verdade.

Creio, todavia, ter existido por um curto espaço de tempo, nesse mar insondável que é a história humana, uma única exceção: Sofia, minha doce Sofia.

Em Deus sou capaz de meditar sobre as grandezas de toda a criação, mas fora do plano das coisas perenes, não me sucede nada mais intenso a não ser você. Fora do jardim sagrado, que por breves momentos a providência nos presenteou, a terra, em suas belezas, jamais conseguiria suportar as grandiosidades de tu, Sofia. Não importava para onde olhasse, como o cristal, ela resplandecia, e nenhum mensageiro era capaz de defendê-la, pois a todos os homens pertencia. Homens estes que finalmente desprenderam-se das amarras do antigos anciãos, cuja tradição não lhes permitia a imediata elevação.  

Antes de prosseguirmos neste ponto, o leitor deve me perdoar por tanto rimar. Por experiência própria, sei como deve ser cansativo lidar com “poesia” barata logo no começo de uma narração. Contudo, peço-lhe a humilde paciência; minha memória nunca foi das melhores, e tu deves concordar que não é fácil se recordar do passado quando há uma bala alojada no seu lóbulo frontal… ou será que ela está no meu peito?

Droga! A verdade é que não lembro de nada desde que apertei o maldito gatilho e, no momento, nem faço ideia de onde estou. Trata-se de um abismo de escuridão dantesca, onde só ouço sussurros, ora em forma de risos, ora em forma de um choro, perto o bastante para me dar a sensação de ter alguém detrás de meus ouvidos. Viro em assombro e nada vejo, apenas os ecos de minhas ofensas e lamúrias.

Aparentemente, não existem entradas ou saídas neste limbo de trevas. Por 7 horas, me aventurei a explorá-lo, seguindo sempre em linha reta, até algo bater em minha cabeça. Parecia ser um porrete de madeira, com um golpe forte o suficiente para deixar-me 20 minutos semiacordado. Ao me levantar, notei estar de volta no mesmo local de que havia partido. Como eu sei disso? No meio de todo o negrume, se encontrava uma escrivaninha de mármore bem desgastada, com uma pilha de livros, matérias de estudo e uma lamparina de fogo azul. Devo admitir haver um certo charme nesse ambiente e, pelo menos, a poltrona da escrivaninha é minimamente confortável.

Quando não estou lendo ou tentando afugentar as vozes hediondas do recinto, não vejo outra alternativa a não ser escrever alguma coisa. Quem sou eu? Bem, me chame apenas de Otto ou, se preferir, de Mensageiro de Deus. Outros detalhes sobre mim seriam irrelevantes, pois como um emissário devo me ater apenas à história que em minha mente tem começando a ficar mais clara.

Minha jovem Sofia era uma moça bem esbelta; no ápice da juventude feminina, aos 13 anos de idade, já era bem conhecida pelas más línguas de Viena. Dizem que até o mais honesto dos homens não resistiria aos seus charmes de menina-mulher. Oh, criança desgraçada! Quanto mal e amor você me causou! Lembro-me do dia que te encontrei; estava bem vestida, parada, apreciando a vista do monumento ao príncipe Eugênio de Saboia, bem na praça Heldenplatz. Desatento como sou, esbarrei correndo em você. Estava três meses atrasado para devolver os meus livros na biblioteca e as multas não eram baratas. Todavia, quase me esqueci de tamanha obrigação ao ver o pequeno anjo na minha frente. 

Wie geht’s? —  eu perguntei, estendendo minha mão para a garota no chão.

Seus cabelos eram de um loiro intenso; o vestido azul, apesar de grande, era excessivamente justo e apertado, algo que realçava o corpo miúdo, mas de curvas chamativas. Os seios se encontravam relativamente à mostra e nada mais eram do que pequenas protuberâncias capazes de caberem em cada parte de minhas mãos. O rosto? Nunca vi covinhas mais sutis, sublinhando ainda mais os seus lábios vermelho-sangue, e para completar, um nariz fino e extremamente empinado. Havia um toque de neotenia em cada parte. Ao fitar-me, eu me espantei por seus olhos serem lindamente grandes; decorria, entretanto, um certo sinal de tristeza neles e posso jurar que, naquele momento, vi suas cores se alternarem do violeta para o azul e do azul para o verde.

Tendo me desculpado, disse que estava indo para a biblioteca a três quarteirões da li. A menina se apresentou como Sofia, a filha do dono desse mesmo estabelecimento. Aquilo foi um completo choque. Como uma moça de tão nórdica beleza poderia ser da prole daquele rhenano estupido? O bom Pai Celestial, a quem tudo pertence, bem sabe como odeio essa gente, especialmente o senhor Sauer Schicklgruber. Esse velho vadio chegou na cidade há 20 anos e, desde então, só tem buscado infortunar o povo comum com os infinitos negócios sujos que trouxe de sua maldosa terra natal, até decidir prejudicar também a classe dos intelectuais e comprar a mais famosa biblioteca vienense. Sem dúvidas, se existe algum pecado na gloriosa raça teutônica, ele está com toda certeza nessa gente! 

Ao chegar à biblioteca, Sauer já me recebeu com seus típicos xingamentos. Sofia ficou meio envergonhada, mas o que me chamou mais a atenção foi sua mãe. Que mulher! Ruiva, alta, como uma gigante norueguesa, com a maioria dos traços de minha pequena Sofia. Ela mandou o Sr. Schicklgruber parar de me incomodar e sorriu para mim, como se eu não fosse apenas mais um cliente atrasado.

Aparentemente, Sofia disse que iria trazer seu namorado para o jantar daquela noite. Ela era, sem dúvidas, bem inteligente, um espírito de virtude verdadeiramente masculina, preso num corpo de garotinha. Seus pais estavam havia meses exigindo que ela os apresentasse ao pretendente de que tanto falava, tendo o inventado para encobrir os boatos de sua vadiagem. E meu encanto por sua beleza quando nela me esbarrei foi o suficiente para ela saber que eu aceitaria de bom grado toda essa farsa.

É tão estranho ver toda essa genialidade maquiavélica em uma mulher. De alguma forma, mantendo sua feminilidade, a menina dos olhos de Deus conseguiu driblar sua natureza inerentemente ilógica e, por consequente, desonesta e amoral. Como isso foi possível? Sofia era verdadeiramente real? Ou sua existência foi apenas uma miragem do imundo Baphomet, para me desviar do caminho da genialidade? Não sei… eu não sei… Se houve alguma coisa real, genuinamente real, foi a bizarrice que presenciei naquela noite.

A mãe de Sofia teria nos servido uma sopa de legumes de gosto bem singular: era nauseabundo e não se assemelhava em nada com o sabor dos frutos da terra. Percebendo meu incômodo, a senhora Schicklgruber riu, disse que era uma reação natural daqueles sem contato prévio com a “força vital”. Havia malícia em sua voz e, imediatamente, o maldito Sauer começou a entoar cânticos numa língua estranha. Parecia um hebraico misturado com enoquiano e com uma pitada de iorubá dos endemoniados feiticeiros da Guiné. Meu corpo começou a ficar leve e uma sonolência avassaladora tomou conta de mim. A última imagem que me veio foi o sorriso de minha pequena musa, diante do meu assombro ao ver um olho humano pousando em minha sopa. Não me lembro de nada que veio a acontecer depois disso. Só sei que aquela não foi a última vez que vi Sofia. Mas isso é outra história.

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