Menu fechado

Anjo de Grief

Hoje, o anjo tristonho vela os cadáveres, ainda que de suas asas restem afáveis lembranças.
O casal se conhecera pelo “Antigo Regime”, como historiadores diriam, onde a família de ambos concordou em juntá-los. É raro os casais burocraticamente justapostos serem felizes. Era o destino de William e Emelyn. O homem era levemente burguês, boa parte da vida foi vivida com literatura, crítica e escultura; esta última, sua profissão. Tiveram quatro filhos, mas um deles, ainda prematuro, abraçou a frieza da morte.
Todavia, não apenas o filho deixou o seio da mãe secar em melancolia: ela própria, anos mais tarde, também viera a falecer. O desgosto profundo, tal como larvas, mastigava a pouca esperança do marido; permanecia vivo, mas a alma partira ao vazio.  
Emelyn viera de uma família de classe média. Mudou-se para Londres e numa tarde despretensiosa na biblioteca, puxou seu livro de versos favorito: Livro de Mágoas, de Florbela Espanca. William, por outro lado, apesar de amante da poesia, nunca enxergou tanta beleza na autora. Sentou-se ao lado da moça e, num discurso quase autoritário, discorreu uma amarga, porém respeitosa crítica ao “excessivo e dogmático silêncio subjetivo” da autora. Discutiram, mas não o suficiente para marcarem um café.
No dia mais funesto do ano, portanto, o dia dos finados, William planejara ir ao túmulo de sua amada. 
O escultor, antes de ir ao cemitério, puxou seu casaco presenteado por sua falecida esposa. Escreveu algumas prosas homenageando-a. Até que algumas memórias o puxaram à dor. 
O céu manteve-se cinzento, mas não a ponto de praguejar a chuva. A temperatura decadente ornava sua tristeza como se aquele dia fosse especialmente seu. Corria o vento sobre seus ouvidos como uma lira angélica e, detalhista e apreciador de boa música como era, recordou-se da festa após o casamento. Dançaram valsa e a sinfonia de Haydn. Cintilava o sorriso meigo dela, e também tão triste, e apaixonou-se mais ainda o homem romântico. O compasso dos pés sincronizava os pombinhos numa noite fresca, que postumamente, mesmo em tristeza, seus pés ao vento ainda conseguiam acompanhá-la. E ele sorria. 
William após perder a amada foi adoecido pela bílis negra; seus dias passavam despercebidos. Não sentia vontade de comer, andar, esculpir e muito menos ler Florbela Espanca. Restava apenas o peito calado que já não conseguia fingir um grito.
Caminhou sobre a terra firme do cemitério, cumprimentou os funcionários, pessoas diferentes que naquele momento conheceram sua tristeza. Rente à cova, achou que conseguiria manter-se frio diante da mulher que trouxe sentido a sua vida. Mas quase num solavanco fisiológico, as lágrimas escorreram e, uma delas, pregou a terra. Percebeu de relance ao olhar a terra algo intrigante: o anjo do jazigo que ele lapidou para Emelyn parecia ter mexido as asas.
— Mas o quê?! — disse a si, confuso.
O escultor sentira sobre a nuca um vento mais gelado do que o comum. As lágrimas sofridas secaram e sobrepujou uma curiosidade. Seria de alguma forma a presença do amor o abraçando? Não havia o porquê de ter medo, estava literalmente em frente ao sentido de sua existência. Após alguns minutos de suspense, mas de apáticos resultados, tentou ignorar tudo isso.
Puxando uma de suas prosas para a esposa, lendo como se a voz do além o pudesse acalentá-lo, ouviu um grunhido quase imperceptível no ouvido esquerdo.
— Emelyn?! — disse, perturbado e com uma leve intuição de que obteria respostas. — Responda, é você? 
Pairava o vazio. Chorava e caminhava em direções aleatórias. Leu novamente a prosa e lembrou-se do primeiro beijo com gosto de roseiras. Rosas, porque, do lado do café onde se encontraram pela terceira vez, habitavam buquês de jasmins. O aroma que completava o clima de romance era tão bom que deixara excitada o amor da moça pelo rico escultor. 
Sentou-se, tremendo, com os braços abraçando suas pernas como uma criança ferida. 
— Por que, meu Deus? Emelyn! — gritava abafado.
A resposta surgiu. Um toque de unha passou sobre suas costas, mas num solavanco corpóreo; nada via. Chiados em seus ouvidos começaram a afiar seus sentidos. Repetidas inclinações da cabeça para o lado e para o outro: ninguém estava ali, nem mesmo os poucos os funcionários do cemitério. 
— Se é você, Emelyn, me responda, por favor!
De repente, um estrondo eclodiu na cabeça, talvez o anúncio de um desmaio. Sua visão estava embaçada. Uma tontura inebriante consumia a mente. Sentiu seu corpo trêmulo, mas, em poucos instantes tudo se estabilizou. O corpo encontrava-se deitado no cemitério. Levantou-se e, olhando aonde fosse, uma neblina ébano desenhava todo aquele local. O anjo que instantes atrás estava à frente, despareceu. William estava confuso; fungava e sentia sobre seu casaco sujo algo que parecia cinzas, mas jasmim — da mesma fragrância que contaminava todo o cemitério.
Caminhava com a expressão confusa. Deveria sentir-se apreensivo, mas tudo soava incógnito. Uma árvore com os galhos murchos pousou corvos; todos cantavam à maneira da espécie — pelo menos foi o que o escultor entendeu. Seus olhos verdes hipnotizaram-se com a cena. Todos grasnavam um sobre o outro, até que o silêncio, como império soberano, os calou sem razão. Eles paralisaram-se, os olhos negrumes encaravam William. Cessou quando um cântico fêmeo emergiu no fundo da neblina. Os corvos pulsaram em direção à voz. 
Curioso, o escultor também seguiu o canto. Seus olhos começaram a lacrimejar e, em poucos instantes, marejavam o casaco cinzento. Não estava se sentindo triste, mas curioso, e isso o fez adentrar mais ainda em confusão. Conforme aproximava da voz que gradualmente assanhava o amor de William, os corvos voltaram seu voo a ele, porém não diretamente alvejando-o. Coçou os olhos e não podia crer: Emelyn estava no colo do anjo. A felicidade que o homem sentiu escorria nas lágrimas, todo o corpo sentia. Já não era necessário olhos, nem ouvidos; a profunda energia cósmica do seu amor gritava pela amada. Ela sorria, mas um sorriso mais melancólico que o comum. 
Quando, afoito, correu naquele longo corredor do cemitério negro, tudo ficou lento; extremamente lento. Percebeu a incongruência e olhava seu próprio corpo ir, como se estivesse desassociado dele. O frio na espinha perpetuou seus últimos momentos.
Próximo aos braços de Emelyn, com sua boca sedenta por beijos, o anjo tocou com o dedo indicador a testa de William. Ele caiu duro, esculpido em confusão.
Comentaram sobre o caso; os burburinhos disseram que a causa da morte foi tristeza. Encontraram em seu bolso o seguinte poema de Florbela Espanca:

A Flor do Sonho alvíssima, divina
Miraculosamente abriu em mim,
Como se uma magnólia de cetim
Fosse florir num muro todo em ruína.

Pende em meu seio a haste branda e fina.
E não posso entender como é que, enfim,
Essa tão rara flor abriu assim!…

Milagre… fantasia… ou talvez, sina…
Ó Flor, que em mim nasceste sem abrolhos,
Que tem que sejam tristes os meus olhos
Se eles são tristes pelo amor de ti?!…

Desde que em mim nasceste em noite calma,
Voou ao longe a asa da minh’alma
E nunca, nunca mais eu me entendi…

William Story foi enterrado ao lado de sua esposa Emelyn Story em 1895.

Você não tem permissão para enviar avaliações.

Avaliações

2 avaliações encontradas.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Obrigado por não ter usado GPT!

PLOT: Olha, não achei legal o plot (a ideia central da história), mas a maioria dos contos para o desafio 8 estão fracos de plot, talvez por ser um gênero que a galera não tinha costume (ou talvez porque eu mesmo não goste desse gênero).

ESCRITA: Tem muita vírgula faltando e vírgulas no lugar de pontos. Por causa disso, muitas frases ficam ambíguas e a gente tem que se esforçar pra entender. Nada terrível, mas essas coisas deixam a gente sem tesão pela leitura, sabe? Eu arrumei várias vírgulas e pontos pra não precisar esperar, mas vou falar sobre algumas delas na live. O tempo verbal de algumas frases tá zoado, usando pretérito mais que perfeito quando isso não tem sentido. Eu sei que pode, para o autor, soar melhor. Mas essas coisas têm um motivo específico, não são estéticas, então tem que ficar de olho.

ESTILO: Em geral, eu gostei. Mas a escrita mais poética trouxe alguns problemas narrativos, como metáforas não muito boas e frases que a gente não tem como saber o que significam. A escolha mais poética também atrapalhou a escolha de algumas coisas na escrita, como o tempo verbal. Sei que você gosta de poesia e está experimentando a prosa agora, e achei bom demais pra quem não escreve prosa.

EXECUÇÃO: O primeiro parágrafo tá muito expositivo e isso acontece outras vezes no decorrer do conto. Nem sempre isso é fácil fazer de outro jeito e às vezes não é nem necessário, mas tem que pensar um pouco nisso pra ir melhorando. Enfim, construção de cenário e de personagem é difícil em contos pequenos, mas a gente tem que comentar kk Não dá pra entender bem a motivação do cara, nem o caráter/personalidade da mulher. O anjo também me pareceu um pouco confuso. O cenário está legal.

DESAFIO: 10 de 10 no cumprimento.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

O conto tem um roteiro que nos conta pouca coisa. Um homem que perdeu a amada e, no dia dos finados, quando a visitou, morreu também.
Há elementos interessantes que poderia ser explorados, como a razão de esculpir anjo na lápide. Qual a razão? Tudo acontece PORQUE SIM. E, portanto, é desinteressante. Outras coisas são levantadas sem que sejam exploradas. Não precisam estar ali. A questão do casaco, por exemplo. Ganha espaço tirá-lo do conto. Em um capítulo de livro, alguns detalhes podem ser melhor explorados, mas para um conto, se não tem relevância para o roteiro, é bom que não seja mencionado, principalmente se estamos falando de um limite de 2000 palavras.
Mas, o maior pecado do autor está no uso de referências (metáforas, comparações ou apontamentos) que não fazem sentido para o leitor comum. É uma crítica difícil de se fazer, pois é um erro que os melhores escritores cometem, mas a revisão existe para isso. Vou exemplificar, tentando não ser exaustivo:
*O compasso dos pés sincronizava os pombinhos numa noite fresca, que postumamente, mesmo em tristeza, seus pés ao vento ainda conseguiam acompanhá-la.*
O que isso significa? Ele estava se lembrando dela no casamento, mas como é que, postumamente, os pés acompanhavam? Em memória? Em memória é difícil não acompanhar. Confuso.
Quanto a linguagem poética, e a suposta predileção do autor pela poesia, explicam muita subjetividade na construção frasal. Há quem aprecie uma abertura tão subjetiva, pois deixa à cargo do autor imprimir suas noções no texto, e, com isso, identificando-se mais.
Porém, não acho que funcione para um conto que pouca coisa… conta.
Cria um clima que não deixa a história seguir, e, quando segue, apresenta um desfecho apenas sinistro.
Há uma confusão no roteiro, quanto à felicidade do casal. Vejamos:
* É raro os casais burocraticamente justapostos serem felizes. Era o destino de William e Emelyn.*
O destino deles era o casamento arranjado ou a infelicidade? Percebe?

*Restava apenas o peito calado que já não conseguia fingir um grito.*
Um peito que não conseguia fingir um grito? Não sei o que isso significa.

E, ainda quanto à escrita, há um uso excecivo do pretérico mais-que-perfeito. Ocasiões em que o pretético simples seria adequado.
Vamos a um exemplo:
*No dia mais funesto do ano, portanto, o dia dos finados, William planejara ir ao túmulo de sua amada. *
Planejou.

*Emelyn viera de uma família de classe média.*
Veio.

E, finalmente, há um furo de roteiro quanto ao uso da autora e a data em que William Story faleceu.
Em 1895, Florbela Espanca tinha apenas um ano de idade. Ela nasceu em 1894.

Finalizo dizendo que até plots previsíveis e clichês podem dar uma boa história. O estilo do autor, todo poético, pode funcionar quando a linguagem poética vem em boa hora. Quero dar um exemplo:
*Até que algumas memórias o puxaram à dor. *
Soa muito melhor do que dizer que “algumas memórias doloridas surgiram”, por exemplo. É um bom uso, a meu ver. E há outros pelo conto.

Ainda em tempo, não consegui entender a razão da poesia presente no conto. Mas, confesso que pode ser só um problema pessoa de extrair qualquer coisa de uma poesia.