Numa noite fria de novembro, os portões do antigo casarão rangiam em movimentos repetitivos.
A lua brilhava intensamente no alto, a chuva oscilava entre a tempestade e a garoa.
Mexia para lá e para cá, e nada do sono vir lhe visitar. Teria de acordar cedo no dia seguinte para cumprir os seus compromissos, e isso lhe incomodava um tanto.
Sem paciência, levantou-se, desceu até a cozinha para tomar um leite gelado com algumas bolachas de maisena. Sentou na escrivaninha de sua biblioteca, pegou Mary Shelley, Poe, Robert Louis e alguns poemas de Byron para ler, na esperança de que o sono batesse à porta.
Acordou assustado com o barulho de um trovão. Percebeu que dormiu por alguns minutos, com o seu corpo inclinado sobre os livros. Teve um sonho estranho.
Nele, o sangue de uma jovem era todo dissecado e todo o seu corpo triturado, e misturado com um produto que não conseguia identificar.
Tais imagens lhe deixaram perturbado, pois pareciam reais.
A noite foi passando, Milton retornou às suas leituras, não conseguia dormir, apenas alguns cochilos.
Já era claro, quando precisou ir se aprontar para cumprir suas responsabilidades. Pensamentos matutavam em sua cabeça.
No começo da tarde, por volta das duas horas, enquanto voltava de carro para casa para almoçar, quase sofreu uma tragédia. Seu carro foi parar no acostamento da avenida por ter cochilado no volante.
Seu coração quase saiu pela boca, e uma gentil moça que presenciou todo o ocorrido lhe socorreu. Colocou Milton para dentro do estabelecimento em que trabalhava, trouxe uma cadeira e lhe serviu um copo de água com açúcar para acalmar os nervos.
Depois de ter conversado com a bondosa moça que lhe ajudou, e ter relaxado os nervos, decidiu voltar para o seu trajeto rumo à sua casa. Ela insistiu que ele ficasse mais e dormisse um pouco para chegar seguro, mas, ele insistiu que estava bem, que tinha sido apenas um descuido e continuou o seu trajeto.
Nada melhor do que chegar em casa. Lançou as chaves sobre a mesa, desabotoou a camisa e se jogou sobre a cama. Era tudo o que ele queria, depois de quase ter sofrido uma fatalidade. Antes de cair no sono, ficou procurando em sua cabeça pra ver se identificava o que lhe chamava tanto a atenção na loja de móveis planejados, mas, o sono foi maior e acabou vencendo. Milton, então, capotou.
*****
Um mês depois da noite em que teve insônia, Milton se encontrava na mesma situação. Rolava para lá e para cá, e mais uma vez não conseguia dormir.
Desceu novamente até a cozinha para pegar um copo de leite com bolachas de maisena, e seguiu em direção à sua biblioteca.
Entrando no cômodo, tapeou o dedo na perna esquerda traseira da cadeira de sua escrivaninha. O copo de vidro caiu de sua mão, e sentiu a alma saindo e voltando ao corpo.
Sentou no sofá enquanto estava se recompondo. De repente, como num estralar de dedos, Milton, começou a encarar aquela cadeira. Sabia que já tinha visto alguma ou algumas iguais a ela. Não lembrava onde, mas sabia que tinha visto.
No dia seguinte acordou tão satisfeito de que tinha conseguido dormir.
Pelo final da tarde, enquanto voltava para casa depois de cumprir toda a sua agenda, ligou o rádio enquanto dirigia. As buscas pela jovem Marie, que tinha desaparecido há mais ou menos cinco meses, ainda continuavam, e as pistas que tinham não levavam a nada.
De repente, lembrou do sonho que teve mês passado, durante aquela noite em que sofreu de insônia e, logo, fez associação ao desaparecimento da jovem Marie.
Ficou tão estarrecido porque aquele sonho poderia não ser apenas um sonho, mas uma pista. Parou no acostamento.
Ao parar, colocou a cabeça entre as mãos e o volante e olhou para a sua direita, avistando a loja de móveis planejados. Dona acenou para ele. Sendo gentil e educado, Milton acenou de volta, com um sorriso no rosto. Mas algo lhe chamou a atenção, não apenas uma cadeira, mas várias que estavam espalhadas pelo estabelecimento. Eram iguais aquela que tinha em sua biblioteca. Tinham tudo em comum, formato, cor, brilhos, eram idênticas. Aliás, a perna traseira esquerda de ambas era de cor vermelha. Mas não um vermelho qualquer. Era um vermelho forte e escuro.
Se ele estava pensativo, ficou mais ainda. Ligou novamente o carro e seguiu rumo à sua casa.
Como amava aquela sensação de chegar em seu próprio lar.
Quase deixou o café cair sobre a mesa após um devaneio. As imagens do sangue de uma jovem sendo dissecado e o resto do seu corpo ser triturado, lhe assombraram novamente. E para piorar, outras imagens aterrorizantes lhe assaltaram a paz e o equilíbrio.
Pra lá e para cá ficava pelos cômodos da casa, tentando encontrar respostas e o que deveria fazer.
Foi quando teve a ideia de pesquisar sobre desaparecidos. Ficou mais perturbado ainda quando descobriu que as vítimas de seus sonhos eram equivalentes às das matérias encontradas.
No total eram doze vítimas, diferentes umas das outras, em suas idades, tamanhos, cores, e ficou pensando se poderia ser uma única pessoa por trás dessas atrocidades, ou se mais de uma, talvez, até uma quadrilha.
Depois de uma longa investigação foi preparar seu jantar. Colocou um jazz para tentar relaxar, pois estava um pouco tenso.
Corta cebola aqui, corta alho ali, refoga feijão, prepara arroz, quando se deu conta de uma coisa que não sabia como tinha passado despercebido de sua atenção. Não, isso não poderia acontecer.
Foi até a biblioteca para conferir se era isso mesmo, e se não estava ficando louco. A cadeira de sua escrivaninha era a mesma das cadeiras da loja daquela bondosa moça. E um detalhe que lhe deixou encafifado: quando teve o primeiro sonho estranho naquela noite em que não conseguia dormir, estava sentado na cadeira estranha.
Lembrou que foi uma amiga, Larissa Magalhães, que lhe deu de presente para colocar em sua escrivaninha, e automaticamente ligou para ela para saber onde tinha comprado. Já sabia a resposta, mas queria ter certeza. E certeiro, Larissa comprou na loja de móveis planejados daquela bondosa moça que lhe socorreu.
As coisas começaram a lhe fazer sentido. Não tinha certeza de nada, mas acreditava que tudo aquilo estava acontecendo não por acaso, mas por um propósito, desde a insônia daquela noite até quase ter batido o seu carro. Tudo, exatamente tudo, estava conectado. Agora era sua missão descobrir o por quê daquilo tudo.
Então, veio a seguinte indagação: “Será que eu vou descobrir onde estão as vítimas desaparecidas? Será que este é o objetivo aqui? E quem será que está por trás dessa tamanha crueldade?”.
*****
O tão aguardado fim de semana chegou. Sábado de sol, um dia perfeito para lavar roupas, beber água de coco, uma caminhada na praia e um café da tarde em sua casa com um amigo muito próximo, Caetano.
Às cinco da tarde, Caetano chegou na casa de Milton, para um momento de comunhão, comida e muita conversa.
“Nossa, que coisa estranhamente esquisita”. Disse Caetano tão aleatoriamente.
“Desculpe, meu caro, mas você está falando do quê?”, respondeu Milton um pouco confuso.
Caetano, então, apontou para a cadeira e disse: “Este vermelho escuro me parece um tanto estranho, me parece muito mais do que apenas uma tinta comum, mas me parece…”, e ele se calou.
Milton que estava com os olhos vidrados enquanto seu amigo falava, respondeu em bom tom:
“Fale, rapaz, lhe parece o quê?
“Você quer saber mesmo? Mas pode ser coisa da minha cabeça”.
“Lógico que eu quero que você fale, não me mate do coração por curiosidade”, respondeu Milton.
“Me parece sangue, Milton… sangue”.
O anfitrião ficou sem palavras, e como resposta ficou por um instante aéreo, mas, logo voltaram aos diálogos, até chegar a hora de Caetano ir embora.
Assim que ficou sozinho, começou a fazer pesquisas e descobriu que Dona, a proprietária da loja de móveis planejados, ficou com o estabelecimento após a morte de seu marido, um árabe vinte anos mais velho do que ela,
Indo mais a fundo, descobriu que ela, uma mulher de 54 anos, tinha sido expulsa de sua antiga profissão, uma química que tinha sido bem sucedida, chegando a ganhar alguns prêmios, se destacando na frente de outras mulheres e homens, mas, que por motivos obscuros teria sido expulsa.
Tinha algo de muito estranho nesta história toda que não se encaixava e que não fazia sentido. Sentia que existia algo a mais por trás disso tudo.
Então, teve a seguinte ideia: ir até a casa da família de cada uma das vítimas com uma foto da cadeira e uma de Dona, para ver se reconheciam ambas. E assim fez.
Certeiro. Ambas foram reconhecidas. Dona teria ido em cada uma daquelas casas, pegando as cadeiras de volta para si, usando de arma um papo emocional, de que elas tinham um valor sentimental para o seu pai já idoso. Mentira! Tudo aquilo não passava de mentiras esfarrapadas. Milton não sabia como ela obteve êxito em tamanha farsa.
“Foi ela. Foi ela. Eu deveria ter desconfiado de tudo, que por trás daquela pele de anjo há um demônio”, disse Milton depois de voltar para casa após a visita à última família.
Naquela noite, enquanto se preparava para dormir, de repente a campainha tocou e Milton foi atender.
Era a sua vizinha Sônia, que gentilmente lhe pediu um martelo emprestado.
“Claro. A senhora pode esperar aqui dentro, pois está frio lá fora”.
Entregou o martelo à sua vizinha. E quando ela iria agradecer pelo favor, tudo o que Milton pôde ver foi o martelo indo em direção ao seu rosto. Caiu e apagou.
Quando acordou, já não estava mais em sua casa. Se encontrava em um lugar desconhecido, deitado em uma maca, com treze mulheres ao seu redor, incluindo Dona, Sônia, a sua vizinha e Meire Magalhães.
Não conseguia enxergar com o olho esquerdo que fora nocauteado pelo próprio martelo, ficando com a parte do rosto desfigurada. Gemia de dor e pedia por clemência, compaixão e misericórdia, mas suas preces não foram atendidas.
Toda a sua busca por respostas e pela verdade chegou ao conhecimento de Dona e de suas irmãs. Inclusive, Dona cresceu em um lar em que seu pai estéril adotou treze lindas meninas, cada uma de família e orfanato diferentes, das quais ela era a mais velha.
O pai estéril era um homem rico e bem sucedido. Era amável, gentil e atencioso para com suas meninas, mas, foi encontrado morto em uma certa manhã de domingo depois de um acidente doméstico.
Dona, então, pegou a cadeira que tinha a perna traseira esquerda tingida de vermelho, como o escarlate, e que ficava na escrivaninha da biblioteca de Milton, tirou a perna vermelha da cadeira com o martelo que Milton emprestou e, em um tom de sarcasmo e fúria ao mesmo tempo, dirigiu as seguintes palavras à vitima e indo em direção a ele:
“Pobre Milton. Você sabe que procurou por isso, não sabe? Já dizia o ditado: “quem procura, acha!”. Mas, também, sabe, que seria a nossa próxima vítima, não sabe? A partir do momento que essa cadeira chegou em sua casa, seu futuro já estava traçado e estava determinado em nossas mãos. Foi bom te conhecer naquele dia. Aliás, você não sabia quem eu era, mas eu já sabia tudo sobre você. Olhe bem para esta parede, aqui tem tudo sobre você: fotos das redes sociais, informações que você nos disponibilizou sobre sua vida, passos do seu dia-a-dia, e tudo isso de graça. De graça, Milton. Você poderia ser mais cauteloso, não é mesmo? Da próxima vez, seja mais cauteloso, heim. Ah, calma aí, não vai ter próxima vez, quem sabe em uma outra vida*. Dona começou a rir um riso de quem está beirando a loucura, e de uma forma inesperada, cravou aquele pedaço de madeira no outro olho de Milton, fazendo jorrar sangue como uma fonte de água em todo o seu rigor.
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