Era uma manhã nublada na Provença, no Ano do Nosso Senhor de 1740. Os pinheiros e as oliveiras selvagens acentuavam a beleza das montanhas de calcário, cujas escarpas guardavam segredos milenares. Uma pesada neblina contornava os carvalhos vermelhos, como um rio correndo entre as rochas. O sol observava a paisagem de longe, enquanto o mistral avançava vigoroso e implacável, trazendo o frio do norte.
Sebastian aguardava a sua presa agachado e imóvel, como uma armadilha humana. Os olhos irritados eram protegidos por óculos de cristal âmbar. Os ouvidos, atentos a qualquer variação do vento. A sua espingarda, um mosquete francês de 1717, em posição de espera, conforme a regra do ofício: não apontar enquanto não for atirar. Usando uma armadura de couro de lobo curtido sob uma túnica de lã, era praticamente invisível.
Depois de horas ouvindo apenas o coro dos pássaros e a sinfonia do vento assobiando nos galhos das árvores, constatou a aproximação de uma criatura maior. Finalmente, o animal emergiu das brumas. Era um magnífico veado vermelho. A majestosa galhada, com sete ramificações de cada lado, se erguia até as nuvens do céu. Os pêlos castanhos brilhavam à luz difusa do sol, mas quase se confundiam com a vegetação.
O caçador apontou o mosquete para o coração do veado, atrás da pata dianteira, armou o cão e segurou a respiração. A nobre criatura levantou o focinho, indicando que havia notado alguma coisa estranha no ar. A tensão no gatilho da espingarda era um memorando da seriedade do momento, mas ele não podia falhar. Com reverência e convicção, atirou. Toda a floresta ficou agitada com o estrondo.
Tomado por uma dor incomparável, o veado deu um bramido profundo e ressonante, e saiu correndo sem rumo. Pondo-se de pé, Sebastian recarregou a arma com um movimento preciso, mas sem pressa. O volume de sangue rosado no chão indicava que o animal tombaria em alguns segundos. Assim, caminhou até o ponto de impacto e seguiu as marcas de sangue, visualizando na mente cada trote e cada tropeço do animal, até o encontrar deitado no chão, confuso e sozinho.
O homem se ajoelhou diante do veado, que dava o seu último suspiro, reconhecendo o seu sacrifício. O vento se acalmou e a floresta chorou em silêncio. Então, fez uma oração a Deus, segurando a cruz de ébano que trazia no pescoço, exatamente como o seu pai o ensinara. Enfim, sacou a adaga e ia começar a embalar a carcaça, mas, num instante, não era mais um veado na ponta da lâmina.
A galhada havia sumido. No lugar das patas, mãos grandes e calejadas seguravam uma espingarda com a força que restava. Era um homem, ferido por um tiro no peito, o sangue ainda pulsando. Porém não sabia quem era, até que viu a cruz caída ao lado do rosto, e todos os pontos da imagem fizeram sentido. Era o seu pai.
Sebastian pulou para trás e caiu. Não conseguia formular questionamento ou hipótese alguma, diante da cena que desafiava todas as suas crenças. Assim, piscava e espremia os olhos, como se pudesse eliminar a imagem da mente, mas o seu pai não se movia, nem parava de sangrar.
“Pai?” Ainda não conseguia determinar se estava acordado, mas não podia ignorar o que via. Com as mãos ainda hesitantes, resolveu colocar à prova aquilo que não sabia se era real.
Ainda mais confuso ficou quando conseguiu tocar o seu rosto, pois viu que não estava sonhando. Por um momento, sentiu a mesma alegria de quando abraçou o seu pai após a primeira caça, mas, no outro, essa emoção foi embora, e o que ficou era só um veado de novo.
Sebastian ficou perdido; não tinha nem determinação para se levantar, nem convicção de que estava caído, tal era a sua aflição. Então saiu correndo. A floresta parecia se fechar ao seu redor, as sombras das árvores se estendendo como garras longas e ameaçadoras. Até o chão se dobrava e o jogava de um lado para o outro.
Estava quase apagando quando chegou em casa. Sua mãe já estava vindo com um copo d’água na mão, sempre calma. Os dois ficaram abraçados no chão da cozinha enquanto ele recuperava os sentidos e o fôlego, até que ele perguntou: “Mãe, como o papai morreu?”
Ela suspirou, chocada com a pergunta e com as lembranças evocadas. “Foi na floresta, numa manhã como esta. Ele saiu para caçar e não voltou. Quando o encontramos, ele tinha sido atingido… bem aqui,” disse, colocando a mão no lado esquerdo do peito e deixando rolar uma lágrima.
Sebastian não parava de tremer. Ele se afastou lentamente, sem dizer mais nada. Tinha a sensação de que havia matado o próprio pai, mas como isso era possível? A culpa era maior do que a razão. Tinha que descobrir o que havia acontecido.
No outro dia, a floresta estava ainda mais sombria. A neblina estava mais pesada e o sol, escondido. O vento soprava com força e cantava, mas a melodia era melancólica e inquietante. Sebastian era um lobo silencioso, mas as árvores se erguiam como búfalos, imponentes e destemidos.
Chegando na marca de sangue em que deixara o veado, estava pronto para coletar o troféu que daria tanto orgulho ao seu pai, mas viu um homem se aproximando do outro lado.
“Quem é você?” gritou, sacando sua pistola de percussão. A música cessou.
O estranho não respondeu, mas apontou a espingarda na sua direção. Sebastian ficou paralisado por um instante. Nunca havia atirado em outra pessoa, até onde se lembrava. Ao contrário, tinha muito claro na memória o ensinamento do seu pai:
“Abaixa essa arma, moleque!”
“Mas o veado está ali, papai. Eu estou vendo ele.”
“Você está vendo o veado ou o arbusto se movendo?”
“O arbusto se movendo…”
“Você tem certeza de que não é uma pessoa? E mesmo que seja o veado, você vai conseguir acertar o pulmão dele?”
Então apontou a arma, pois conseguia ver com clareza o homem que o ameaçava, e no mesmo embalo atirou no seu peito.
A queda foi imediata, o estrondo ainda ecoando entre as árvores, que recolhiam as suas garras. Sebastian ficou ofuscado pelo sol, que voltava a brilhar — os seus óculos não eram escuros o suficiente.
Quando a visão voltou, apenas o veado que havia derrubado estava lá. O homem havia sumido; nenhuma pegada restava. Não conseguia explicar o que acontecera, mas tinha a estranha sensação de que havia vingado o seu pai.
Nesse dia, Sebastian foi para a casa com os passos pesados, mas o coração aliviado. Sem dizer nada, guardou a espingarda em cima da lareira, de onde não pretendia mais tirar. Enfim, sentou-se à mesa e enxugou o rosto com a mão. Sua mãe estava fazendo um guisado.
“Eu matei um homem, mamãe,” confessou, com a voz trêmula. “Eu estava lá onde atiraram no papai. Ele apontou para mim, mas eu fui mais rápido.” Os olhos fixos no chão, escondendo as marcas do choro.
Ela fechou os olhos, enquanto respirava profundamente. Depois, aproximou-se do filho e apoiou a mão no seu ombro. “Se ele apontou para você,” disse, inclinando-se para mostrar a sinceridade nos seus olhos. “Ainda bem que você foi mais rápido.”
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Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Escrita impecável. Estilo um tanto quanto erudito, mas na medida para deixar o texto elegante, aos molde inglês. Por se tratar de um plot com um aspecto fantasmagórico, uma espécie de paradoxo temporal é formado: o rapaz mata o pai e depois volta para se matar, depois de já ter matado o pai. Se ele se mata, não poderia voltar para se matar depois. Outra hipótese é que ele seja o próprio pai, mas que não foi morto, dessa vez. Temos que ter em conta que, em paradoxos deterministas, não há como mudar o destino das coisas, mas em paradoxos de destino aberto, essa história seria possível. Assim, nessa segunda hipótese, o homem é, na verdade, seu próprio pai, que mata seu outro eu, em outra linha temporal. Não há necessidade de um loop, uma vez que os eventos podem mudar, com linhas temporais distintas. Uma outra hipótese é que, na verdade, não havia pai, desde o início. Apenas a floresta pregando peças, ou o próprio homem ludibriado por alguma toxina, enxergando ilusões. O fato de não encontrar nem pegadas do homem que apontou a arma para si é uma evidência que colabora para essa hipótese.
A execução, a meu ver, peca quando regressa à conversa com o pai, sem indicar o o início e fim desse momento. O autor também gasta um bom tempo com descrições da floresta, do veado, mas quando vai dizer algo sobre o pai, apenas diz diretamente que era o pai. Sugestão: descreva mais os traços do pai antes de anunciar (isso se tiver espaço).