Eram por volta de 9 e 30 da noite, e pela primeira vez, eu realizava aquele ritual: levar a escada até a varanda e desenroscar a lâmpada antes de dormir. Foi também a primeira vez que a vi. Sorridente, sob a luz do poste do outro lado da rua. Não havia música, não havia par, e, mesmo assim, ela bailava como se a noite fosse seu imenso salão de festas. Por alguma razão, me senti hipnotizado por seus movimentos e, naquele dia, pela primeira vez parei para vê-la dançar. Meu nome é Roberto Trindade, e essa é a história de como a minha dança começou.
Havia me mudado recentemente para aquela pequena cidade do interior, com pouco mais de 23 mil habitantes, para ingressar na faculdade local. Criado desde menino em uma cidade grande, sentia como se tivesse me mudado para o fim do mundo. Ao aportar no cais e caminhar pelas ruas pela primeira vez, observei as casas da cidade: algumas humildes e outras mais luxuosas, provavelmente de fazendeiros que administravam seus negócios na região. O ar puro era realmente agradável, mas a ausência de prédios me incomodava, me dando a sensação de que aquele não era o meu lugar. Por essa razão, fiz questão de alugar meu apartamento no lugar mais alto possível, que era o quarto andar de um pequeno edifício acima de um mercado. Lá do alto, eu podia ver praticamente a cidade inteira. Para muitos, a paisagem poderia ser encantadora, com suas colinas verdejantes e grandes árvores, mas, para mim, era o maior fim de mundo. Se Judas perdeu as botas por essas bandas, provavelmente nem se deu ao trabalho de procurá-las, só para não passar nem um segundo a mais por aqui.
O primeiro dia foi tão solitário quanto eu esperava. Tirando a aula, passei o dia trancado no apartamento, contemplando o abismo da minha existência. Quando dei por mim, já eram 10 da noite, e ao tentar apagar as luzes, descobri que a lâmpada da varanda se recusava a obedecer ao interruptor. Eu poderia deixá-la acesa a noite inteira, mas isso atrapalharia meu sono por causa do vidro e das cortinas finas.
Peguei a velha escada de madeira, levei-a até a varanda e, enquanto desenroscava a lâmpada, eu a vi chegando. Suas roupas sujas e rasgadas contrastavam com seu imenso sorriso amarelo. A luz do poste recaía sobre sua pele parda e, nos cabelos brancos e crespos, uma tiara de bijuteria indicava que ela tinha se arrumado para aquele momento. Um momento que, depois de uma reverência solitária, aconteceu: ela dançou. Parecia flutuar pela noite, sorrindo e balançando ao som de uma música imaginária. Ela subia e descia da calçada como uma criança brincando com um amigo que existia apenas em sua mente. Algumas pessoas, em seus carros, passavam e zombavam dela, mas ela parecia tão presa àquele momento que sequer respondia. Nada apagava o seu sorriso, nada atrapalhava sua dança. E eu, como plateia, por um momento esqueci de todo o meu infortúnio e a observei. De repente, a realidade de que precisaria acordar cedo no dia seguinte me atingiu e, como alguém que abandona o show antes do fim, voltei para dentro e me deitei na cama, imaginando por quanto tempo ela ficaria ali.
Desde então, todos os dias, quando me preparava para dormir, o enredo do espetáculo era sempre o mesmo: sempre às 10 da noite, ela começava sua dança, e eu sempre parava para observar. No frio, na chuva, suja de trigo ou alvejada por ovos por algum arruaceiro da noite, ela nunca parava. Com o passar dos meses, eu já havia decorado a sua rotina. Às 9h15, ela começava a se arrumar. Penteava os cabelos com um garfo e, olhando-se em um disco velho de DVD, colocava brincos, presilhas e vestidos velhos, que provavelmente encontrava no lixo, e se encaminhava para o palco solitário, sem nem mesmo imaginar que era observada por mim e, como eu estava prestes a descobrir, não só por mim.
Já haviam se passado cerca de oito meses desde que cheguei à cidade. Eu tinha feito alguns amigos na faculdade, nada muito profundo. Quando chegava em casa, era a mesma solidão. Minha única companhia era aquela mulher que dançava e nem sequer sabia que eu existia. A essa altura, já tínhamos nos encontrado algumas vezes durante o dia, mas ela estava sempre de cara fechada, até mesmo para aqueles que lhe presenteavam com um prato de comida. Era estranho, vindo de alguém que provavelmente passava por muita fome. Aparentemente, a dança lhe valia mais do que encher a barriga. Naquela noite, eu cheguei bem cansado e me sentei na varanda, esperando-a chegar. Selecionei no celular uma música que combinava com seus passos e ali fiquei.
De repente, percebi uma movimentação no terraço da casa do outro lado da rua. A construção tinha dois andares e uma laje, e sobre ela, uma figura se aproximava da beirada. Carregando uma cadeira de praia e uma beleza desconcertante, ela armou a cadeira próxima à mureta e de lá, observava a rua. Seus cabelos negros balançavam com o vento naquela noite fria, e, quando a dançarina caminhou até o palco e deu início à sua apresentação, meu olhar alternava entre a mulher que dançava e a que me alucinava. De repente, nossos olhos se encontraram e, meio que no susto, eu acenei, e, para minha surpresa, ela acenou de volta.
No dia seguinte eu desci até o mercadinho para abastecer a despensa. No corredor das massas, eu a vi outra vez. Ela era ainda mais linda de perto, com seus olhos castanhos brilhantes. Eu não podia perder aquela oportunidade e, ao me aproximar, disse:
– Bom dia. Lembra de mim?
– Oi! Você é o esquisito do quarto andar, não é?
– Esquisito? – disse eu, envergonhado. – Por que esquisito?
– Observar uma idosa dançando na rua não é um hábito de pessoas normais – ela sorriu e, ali, entendi que eu havia descoberto sobre ela naquele dia, mas ela já me observava há um tempo. De qualquer forma, eu a descobri também. Então fiz meu ataque.
– Se bem me lembro, eu não era o único lunático ontem à noite, não é mesmo? E, se conhece meu hábito, é porque já acompanhou em segredo há um tempo.
Ela sorriu desconcertada.
– Touche, me pegou. Mas, em minha defesa, não tem muito o que fazer nessa cidade à noite e, na verdade, nem mesmo de dia.
– Idem. Em um lugar como esse, até mesmo uma idosa dançando se torna um show. – Rimos juntos. – Prazer, Roberto.
– Clara.
Nós trocamos telefones e começamos a conversar durante o show noturno. Ela me disse que morava ali desde que nasceu e que nem sempre a mulher dançava nas noites. Disse que a família dela era uma das mais ricas de toda a cidade.
Aparentemente, ela enlouqueceu depois que o marido morreu em um acidente doméstico. Os parentes se mudaram da cidade e tentaram convencê-la a ir. Provavelmente foi nesse momento que ela se tornou uma moradora de rua com uma queda por dança.
*****
No WhatsApp…
— Interessante. Então foi assim que tudo começou
— Pois é. Muita gente na cidade tem medo dela porque acredita que ela na verdade dança com o falecido marido
— Sinistro
— Eu não acredito nessas coisas não. Mas se fosse verdade, seria um excelente roteiro de filme. A dançarina fantasma
— kkkkkk
— kkkkkkkk
*****
Passamos a assistir juntos ao espetáculo algumas vezes. Com o passar do tempo, “algumas vezes” se tornou “sempre”, e a amizade se transformou em namoro. Muitas pessoas podem dizer que se conheceram na escola, no trabalho, na igreja, mas nós nos conhecemos da forma mais estranha possível, e isso sempre nos arrancou boas risadas. Eu que odiava voltar pra casa, agora contava os segundos, corria nas escadas envelhecidas até meu apê, pois sabia que já não estava só. De alguma forma, aquela bailarina solitária me deu tudo o que eu precisava pra ser feliz, e nem sequer sabia que eu existia.
Passados cerca de três anos, quando Clara passou pela porta de entrada, não encontrou a casa bagunçada, mas sim um jantar à luz de velas, rosas vermelhas, e um homem em um terno alugado (no caso, eu) com um anel de noivado em mãos. E, quando ela disse sim, era como se o chão se tornasse nuvens brancas e o mundo ganhasse cores que os olhos humanos nunca haviam contemplado. E como se uma canção soasse em nosso interior, nós dançamos. Entre um giro e outro, podíamos ver que a dançarina estava lá, e então lembrei que, graças à sua dança solitária, eu não precisava dançar sozinho. Nesse momento, em minha mente, uma palavra ecoava: “Obrigado”.
Naquela noite de quarta-feira, estávamos na varanda conversando sobre os preparativos para a cerimônia. Eu enviava alguns convites por e-mail, enquanto Clara fazia ligações para bufês. Eram 10h30 e o show estava na metade. O dia seguinte seria corrido, então nos preparamos para dormir. Ela foi na frente, pois, apesar de todas as minhas tentativas ao longo dos anos, nunca consegui consertar a bendita lâmpada. Tive que, outra vez, pegar a escada (agora ainda mais velha) e desenroscar a lâmpada. Foi quando eu a vi viva pela última vez. Ela girava de um lado para o outro, subia e descia da calçada, sorrindo como sempre, dançando como nunca.
Não se sabe se o motorista estava bêbado ou se algo estava errado em sua mente, mas a caminhonete preta que vinha em uma velocidade absurda, subiu na calçada e a atingiu em cheio, jogando-a para longe. Ela girou no ar e caiu cerca de 20 metros de onde estava, deixando no chão uma grande poça de sangue escuro, acompanhada de suas vísceras espalhadas pelo chão. Quando o momento me atingiu, meu grito ecoou pela madrugada e então aconteceu. Eu me desequilibrei de cima da escada, que já estava pendendo para um dos lados.
Me joguei para o lado direito da sacada, flutuei no ar como na música “Construção” de Chico Buarque e, quando meu corpo pesado atingiu o frio chão de concreto, a minha “canção da vida” terminou.
………………………………………………………………………………………………………………….
Quando abri os olhos, vi Clara chorando sobre meu corpo. Suas lágrimas caíam sobre meu rosto, mas eu não as sentia.
Quis abraçá-la, mas não conseguia me mover, como se meu corpo não me obedecesse, me causando profundo desespero. Tanto que, depois de muito esforço, me movi em sua direção com muita força, mas, ao invés de atingi-la com meu abraço, atravessei sua pele, deixando meu corpo ensanguentado no chão onde ela ainda chorava. Quis chorar, mas as lágrimas não vieram. Tentei gritar, mas a voz havia sumido. Enquanto a canção crescia em meus ouvidos, comecei a reparar no ambiente: a lua era grande e minguante no céu, que estava mais estrelado do que nunca e era de uma cor roxa escura. Poucas nuvens estavam espalhadas por ele, e quando meu olhar se direcionou ao meu apartamento, um casal dançava; onde Clara morava, havia outros. Então, percebi que eles estavam em todos os lugares: na rua, nos telhados, nas varandas. Homens e mulheres, crianças e jovens. Todos dançavam a mesma canção que parecia ser cantada pelo universo. Ainda surpreso com tudo o que via, quando olhei em minha frente, lá estava ela, no lugar de sempre, dessa vez como um espírito sorridente e acompanhada, a dançarina. Ela era girada de um lado para o outro por um homem de terno, cabelos grisalhos e um sorriso tão marcante quanto o dela. Quando a vi, finalmente entendi: sua dança era como uma ponte de amor que unia o mundo dos vivos e dos mortos, e naquela hora, sabia o que deveria fazer. Me levantei e, com toda a força, gritei o nome de Clara. Ela ouviu minha voz e saiu do meio da multidão que havia se formado ao redor do meu cadáver. E quando seu corpo quente tocou minha alma, nós dançamos.
“Um ser humano é o meu amor, de músculos, de carne e osso, pele e cor.”
…………………………………………………………………………………………………………
Foi a primeira vez que a vi. Seus cabelos grisalhos repousavam sobre seus ombros e o vestido de trapos indicava que havia se arrumado para aquele momento, e pela primeira vez, a vi dançar. Me chamo Lucas Santos, e essa é a história de como a minha dança começou.
Você não tem permissão para enviar avaliações.
Avaliações
2 avaliações encontradas.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Uma história de amor entre amantes da arte de rua.
O plot é interessante, a questão da conexão entre a história do personagem principal e a da mendiga, e o elemento da dança como o fio condutor do relacionamento entre o casal é algo interessante.
Porém não curti a execução, achei o texto muito carregado, existe uma tentativa de criar um estilo poético que acaba sendo um tiro no pé.
O personagem principal e alguns momentos da escrita se tornam um pouco maçante, o personagem principal parece um adolescente emotivo.
O casal poderia ser mais construido e ter subtramas para gerar engajamento, talvez alguns diálogos poderiam entregar mais.
Ao se apegar ao casal, no fim da história entenderíamos o que a mendiga passou, já que fica subentendido que a mulher do protagonista surta e passa e começa a dançar na rua.
Amei que a vida e a morte do relacionamento foi causado pela dançarina sem ela ter noção disso.