Eu estava sentado na última fila do teatro; olhos vidrados no palco. Júlia acabara de tocar o último acorde de uma peça de jazz com sua assinatura pessoal — um tom por vezes melancólico, com traços peculiares de entusiasmo. Sua música flutuava entre Nova Iorque e o Rio de Janeiro. O som ainda reverberava pelo salão, mas minha ansiedade só sentia o peso do silêncio que viria. Afinal, eu conhecia aquela performance. Sabia exatamente o que aquelas escolhas melódicas escondiam. E o público aplaudia encantado.
Mais tarde, sentados na varanda do hotel, observei suas mãos tão frágeis, pálidas, dedos inquietos. Tentei disfarçar a preocupação; nunca fui bom nisso.
— Que tempo, hein?
Uma cortina cinza se arrastava pela terra. O cheiro da chuva iminente se misturava a fragrância floral que ela sempre usava.
— E os exames, querida? Chegaram?
A voz saiu entrecortada pela ansiedade mal disfarçada. Ela suspirou, desviando o olhar para o jardim. Por um momento, pareceu estar se despedaçando junto com as flores que murchavam com o outono.
— Ontem, ela faria oito anos, sabia? O nosso presentinho.
Levei alguns segundos.
— Ela está nos esperando, não é?
Ela forçou um sorriso que não alcançou os olhos.
Há algo de terrível em ver quem você ama mantendo a compostura enquanto desmorona por dentro — sensação de impotência.
Ainda assim, foram oito anos dos quais não podíamos reclamar, exceto porque ela não conseguiu mais engravidar.
Na manhã seguinte, já em casa, eu preparava seu café da manhã quando vi os exames amassados e jogados no lixo da cozinha. Quando comecei a ler, ela apareceu na porta; preocupou-se com o vestígio tarde demais para me distrair.
— O que estão fazendo no lixo?
Ela não me encarou. Voltei a olhar para as folhas, até que encontrei o que procurava. Os resultados eram os mesmos pela terceira vez, na terceira opinião médica.
— Então, é isso? — senti a garganta apertar.
Meu sussurro não concordava com o compasso do coração. Ela se aproximou; seus dedos enxugaram meus olhos, mas não os dela.
— Isso não importa, não é? Importa só o que temos agora, enquanto ainda estamos juntos.
A suavidade das palavras me convenceram por um segundo. Nos abraçamos por longo tempo.
No dia seguinte, continuamos de onde havíamos parado. Juntos, já tínhamos decidido que, nesse caso, seria mais digno e mais proveitoso esperar em casa pelos últimos dias. Me reuni com meus sócios, expliquei a situação e antecipei minhas férias para ficar com ela. Ela não podia fazer o mesmo. Se fizesse, os poucos dias seriam ainda abreviados.
— Como antigamente, né? — seu sorriso era singelo.
— Só que em teatros com ar-condicionado.
Não sei dizer a partir de que momento ela se tornou aquela pianista, só sabia que o cachê não era mais simbólico havia muito tempo.
— E eu devo tudo a você.
— Eu é que te devo tudo.
— Você me tirou de lá, mesmo eu sendo só uma…
— Por favor, não diga, meu bem.
Uma infância sabendo que fora vendida pela mãe como objeto a um criminoso poderoso? Isso não pode ter sido fácil.
— Você foi o único que viu algo em mim. O único que apostou em mim.
— Mas você sempre foi maravilhosa. Eu só…
— Você construiu um mundo pra mim! Sem você, eu não suportaria a vida depois da Helena. Então agora eu toco pra você.
No evento, a primeira música quase desandou. Meia-dúzia de músicos percebeu erros sutis de tempo e improvisos mal calculados. Só eu sabia que eram gritos de socorro. Fiquei ansioso no início, mas ela entrou no clima. E o jazz fez sua parte.
Meses antes, quando o primeiro médico nos disse que as chances eram pequenas e que a doença estava avançada, Júlia só respirou fundo. Mas naquela noite, quando subiu ao palco, tocou “Bye Bye Blackbird” de uma forma que me fez sentir o chão se abrir sob os meus pés. Eu soube que era o começo de sua despedida. Jamais tocava uma música duas vezes do mesmo jeito; me perguntava o que ela faria quando o dia se aproximasse.
— Que momento, Júlia! E que performance! De onde vem tanta energia?
A entrevistadora da TV local não fazia ideia do que estava pedindo que Júlia dissesse. E ela, sempre elegante e firme, respondia com a mesma tranquilidade ensaiada.
Do evento até dormirmos, não parecia estar preocupada com nada. Enquanto isso, eu me revirava tentando afastar aquela ideia; uma maré implacável. “Vou me esquecer dela?”, indaguei a Deus em voz baixa, temendo que o silêncio da casa me respondesse. Não haveria mais um só dia para acordar com seu cheiro. A ausência dela seria como o céu, estendido sobre todas as coisas. Quando acontecer, este corpo não será mais eu; será uma casa vazia. Já me sentia como morto entre os vivos.
Mas que tipo de marido pensaria tanto em suas aflições e tão pouco nas da esposa? Eu a observei em silêncio. Me consumiu pensar na tensão crescendo em seu peito. O que dizer a ela? Como confortá-la no que eu próprio não conseguia aceitar? E quanto de alegria ainda restaria a um casamento entre o morto e o vivo?
Nos primeiros dias, à noite, eu murmurava sozinho sem parar, de olhos fixos no teto, buscando respostas que, sabia, não viriam. Eu ainda nem sequer havia aprendido o suficiente com ela. E tampouco sabia como alguém poderia viver sem metade de sua própria vida.
As semanas seguintes foram um borrão de apresentações e visitas de parentes. Cada vez que alguém deixava a casa, sabíamos que, no fim das contas, seríamos só nós dois no final.
O evento seguinte foi em Niterói. O público só viu a pianista brilhante; eles aplaudiram e sorriram. Ninguém notou a angústia nos graves prolongados e o tom abafado nas teclas agudas.
O piano a mantinha de pé, a doença avançava. Alguns dias, ela ficou mais cansada, distante; isso me destruía por dentro. Mas a tensão ficava no palco; lá, eram desvios de olhar repentinos e lágrimas escondidas. Em casa, às vezes, lia poesia quase consolada demais; sintoma da sua fé, sua confiança no que viria, no que fora prometido. Quisera eu que o pensamento fosse nela uma constância e que o sangue cristão lhe fluísse na cadência das velhas sílabas de uníssona frequência.
Dias mais, ela começou a dormir com o rosto tranquilo e parecia até alheia ao turbilhão de emoções. Eu não entendi o que aquilo significava e isso passou a me incomodar cada vez mais. Eu estava perdendo o controle.
— Às vezes, eu não entendo por que você quer tocar, se já se conformou.
— Jaime, eu tenho pouco tempo pra tocar.
Seu olhar me pegou desprevenido. Estremeci. Me senti um idiota. Entendi de imediato, mas ela continuou:
— Tocar é estar com você.
Enquanto eu só conseguia pensar em como seria viver sem ela, os concertos eram uma tentativa de esticar o tempo que nos restava. A garganta apertou.
Em breve, não ouviria mais a sua respiração, nem seria mais acordado pela sua voz de manhã. Eu não queria que o meu murmúrio noturno visse a luz do dia, mas como seria me dar conta de que ela não estaria mais no outro cômodo ou, de repente, sentir como se ela estivesse lá, mas saber que era apenas um eco de memórias? O que acontece, afinal, depois daqui? E então, a aflição se tornou meu cotidiano.
Na mesa redonda, com musicistas mulheres num evento da PUC, alguém forçou uma pergunta sobre independência feminina e coisas do tipo.
— Eu não podia ser quem eu sou sem meu marido, Jaime. Ele está ali — ala me procurou com os olhos e eu acenei. — Talvez nunca ninguém entenda ou sinta, mas por trás de cada nota há um pedaço dele, do nosso passado e da nossa filhinha que se foi.
Aquilo ressoou na minha cabeça até chegar em casa.
No outro dia, fomos a um lugar que costumávamos frequentar nos primeiros anos. Talvez o ambiente de tempos bons aliviasse a angústia.
Nos sentamos num banco do parque, sob a sombra de uma sete copas conhecida nossa. O céu estava levemente nublado, com uma brisa suave que movia os galhos, mas não havia nada de leve em mim. O peso da realidade se acumulava, cada pensamento colidindo com outro — ondas em um mar revolto. E eu sorria para ela, ao meu lado.
Comprei sorvetes de casquinha, uma pequena indulgência que sempre trazia um sorriso. O sorvete começava a responder ao calor do sol que se intensificava e eu comecei a me angustiar vendo o pouco tempo que tinha. Eu precisava de mais tempo. Fiquei paralisado. Comecei a senti-la como uma lembrança. Seu sorriso, sua voz. E a lembrança se agigantou. Por um instante, vi tudo como se fosse só memória. Me perdi. Meus ouvidos não sabiam que ela estava ali.
Um zumbido bloqueando tudo atravessava a minha mente. Não tinha notado o mendigo que insistia por uma moeda, quase encostando na mão de Júlia. Me levantei no susto.
— O que tá fazendo? Sai daqui!
— Calma, chapa. Eu só…
Empurrei-o com a mão suja de sorvete. Ele percebeu, olhou as marcas na camiseta e, como se já não estivesse todo sujo, reclamou, balbuciando algo que não entendi, dando um tapa no sorvete.
— Não, Jaime! Não tem problema!
Não a ouvia. Avancei sobre ele. “O que você fez?!” Esmurrei seu rosto. Você… você… Peguei-o pela garganta; você tirou tudo de mim! Explodi em um chute nas suas costelas.
Só parei quando vi a mancha que se formou na terra em volta da casquinha; um eco. O mendigo se levantou e correu. Ajoelhei-me, cobrindo os olhos por um dos braços enquanto socava o chão. Sempre esteve fora do meu controle. A quem eu queria enganar?
Fizemos um único jantar em família para comunicar. O clima de ofício fúnebre por pouco não a desestabilizou. Na refeição, pensei em dizer que havia encontrado a comida de sabor perfeito ao meu paladar; quem sabe isso a consolaria de alguma forma. Acabei não dizendo. Num momento, deixei a cozinha e minha tia perguntou se ela ainda planejava ter filhos. Júlia quase deixou o copo cair. O constrangimento foi palpável, mas ela recuperou o controle, como sempre fazia. Fiquei sabendo só na cama.
Os dias se passaram. O corpo traía, os sinais não podiam ser ignorados. O tempo estava se esgotando a cada suspiro. Ela me ensinou a não idealizar. Aprendi a amar exatamente ela e não o nosso passado. Mas ela me ensinou algo mais: há um limite para ser uma só carne.
— Estamos sendo desmamados deste mundo, não é?
Apenas assenti com a cabeça e pensei: “ela vai se despedir de mim com a música”, porque as palavras nunca foram o nosso forte. A música seria sua carta de luto. Enquanto o último acorde ressoar, estarei lá, inaudível entre as notas. Não foi sempre assim?
E naquela noite, ela espancou as teclas. A crítica chamou de “intenso”. Ela tocou “All of Me” como saideira — e ela nunca tocava essa. Era como se já soubesse.
No camarim, me sentei ao seu lado e segurei sua mão. Não dissemos nada. Isso foi ontem.
O dia chegou. Ela ainda dorme. E, sim, somos só nós dois. Não haverá despedida pública, nem música extra. Só o silêncio.
Eu soube que este era o dia no momento em que me levantei para beber água de madrugada, há poucos minutos. Estou esgotado — não só fisicamente, mas daquilo tudo. O corpo dói, a mente pesa e tudo o que me resta é a certeza de que eu vou partir antes que o sol se levante. No fim das contas, os médicos foram otimistas e me deram mais tempo do que eu tinha.
Deitei-me. Estou em silêncio ao lado dela sentindo a vida escoar lentamente de meu corpo. Pensei em deixar uma carta, mas quão melhor será se eu tiver partido dormindo? Em breve, estarei com Helena e esperaremos. Enquanto o sono da morte não me alcança, contemplarei os traços que tanto amei. Deus me permita levar intacta esta memória.
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Plot Execução Escrita Estilo Desafio
O final realmente me surpreendeu. É um conto bem escrito e causa emoções ao leitor, em grande parte, aflição, angústia, curiosidade e um certo mistério. Um bom conto, se me permite a redundância.