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A Boneca de Tarlatana Rosa

— Tens medo do carnaval, João? — perguntou Juan Carlos, virando-se no banquinho da varanda de casa.
João observava os liquidâmbares do jardim a ulular com o vento, como se suas pétalas sussurrassem horrores indizíveis. Entre os dedos, um papel amarfanhado. Uma carta. A noitinha já serpenteava o céu com seu humor de mulata, prometendo uma noite escandalosa.
— Do carnaval? — perguntou João, ainda encarando as pétalas. — Não, não tenho medo dele. Tenho medo do que vem com ele.
Seu anfitrião sorriu, bebericando um café quase tão escuro quanto a pele de ambos:
— Ah, é? E o que vem com ‘ele’?
— Os mortos.
Juan Carlos se debruçou sobre o canapé da varanda. Apreciou com os olhos o seu jardim; sabia que nada seria capaz de entretê-lo tanto como uma história de mulherengo. O sorriso que ornou a face de Juan Carlos era uma amálgama de formosura e pena:
— Eu acho falta uma neguinha em tua vida, hombre. Uma bem arretada, para te judiar e não te deixar pensar em baboseiras de macumbeiro.
— Tu sabes que sou católico, Carlos!
— Também sei que és mulherengo: fé e devassidão não combinam. Vai me dizer por que me pediu para passar a noite aqui em casa como se um agiota estivesse a te perseguir? Ou terei de fitá-lo a perder as estribeiras até com as flores do meu jardim?
João suspirou, dizendo:
— Se vos contasse, dir-me-ia que sou louco.
— Por mulheres, só se for. Aposto que foi uma que te deu este bilhete. Ande, hombre, conta-me o que te fez se afastar das ruas numa chona tão agradável. Para mim, isto sim é ato de loucura vindo de vossa parte.
— Tens bebida? Ótimo…

João atravessou as alamedas com seu gingado de neguinho apaixonante, encantando as pretinhas, as branquinhas e as ruivinhas com seu sambar. Tantas noites passadas ali, tantas histórias para contar. Quando amava, ele tinha certeza que viveria para sempre. Bom, pelo menos até a caninha acabar e os músicos se retirarem para os seus barracos, à espera de um amanhã melhor. Mas melhor que o samba de João somente era sua indumentária: sapatos de couro justo, polidos e engraxados de tal maneira que a lua no céu parecia refletida sobre os seus calçados como se fossem, na verdade, um lago de ébano.
A calça de alfaiataria era branca como os dentes do mulato, sua jaqueta de linho e chapéu rodopiando à medida que a gente do Rio de Janeiro fazia sua festa. E que festa! João se perdia num mar de beijos e confetes, máscaras e fantasias que captavam a essência do latino-americano.
Simpatia se transformava em suor e, misturando-se à bebedeira, acendia as paixões da carne. João enlaçava as damas que lhe alegravam a noite com sorriso provocante, desnudando as pernas por debaixo de saias pomposas. Beijos e carícias, sacanagem e piadas do mais baixo nível: este era o carnaval que João gostava.
Até que, no meio de danças, compartilhando pares, música e promessas no meio de uma vida agitada, quente e laboriosa, João encarou aquela moça. Uma bebê, parecia, seus cachos loiros como ouro derretido, o perfume doce a lhe enlaçar como a mais renomada das vaqueiras não poderia.
— Quem é aquela dama? — perguntou João a uma de suas amigas.
— Aquela ali? — respondeu uma delas. — Deste canto do Rio não é. Dizem que vem de fora, pelo sotaque. Mas tu não terias chance… Ei… João!
Aquela bebê, com saia de tarlatana rosa, fisgara-lhe com o olhar mais penetrante que alguma vez recebera. Seus lábios sorriam como se ela soubesse que já tinha sua presa. O primeiro calafrio de João veio com o toque da dama sobre o seu rosto, seus dedos eram frios gelo. Mas a voz, ah, a voz era quente como fogo:
— Vocês mulatos são muito impacientes, sabia? Já querem dança antes mesmo de conhecer o par.
— Está no nosso sangue — disse ele, estendendo a mão. — Por isso somos mais fortes.
Ela se aproximou, seus dedos delicados acariciando o peito, enquanto a outra mão aceitava a proposta para a dança. O hálito de álcool somente não foi mais enebriante do que as palavras que saíram dos lábios dela:
— Então me mostre.
E ele mostrou. Aqueles olhos dela pareciam chamuscar enquanto eles se engendravam, passos, abraços, amassos e pulinho de desenlaço, que os separavam somente para os unirem de novo. A lua escalou o céu, as estrelas como testemunhas de uma noite que prometia terminar com brasa. João se sentiu arrastado por ela, aquela boneca de tarlatana rosa, que nada dizia pois tudo falava com o olhar.
Num beco esquecido, os beijinhos começaram. Os amassos. Até que João sussurrou, ébrio de paixão:
— Tira tua máscara, deixe-me vê-la.
A boneca de tarlatana rosa lhe enlaçou com as pernas:
— Eu sou assustadoramente bela para ti.
— Então arrancarei com os dentes.
Dito e feito. A brisa que se seguiu pareceu assustada ela mesma, a noite tonteante transformando-se num jorro de medo. A face da mulher não era a de uma mulher, era como um cadáver, recheado de maquiagem para esconder suas nódoas. Seu olhar tinha um centeio, mas os olhos estavam negros como se vermes tivessem encontrado ninho em suas órbitas. Os cachos, os cachos! Não passavam de peruca.
Mas a boneca de tarlatana rosa lhe jogou contra o chão, aproveitando a fraqueza que o medo traz para se debruçar sobre ele:
— Não te preocupa, eu faço amor tão bem quanto as vivas.

— Não pode parar aí! — exclamou Juan Carlos. — Não na melhor parte, hombre!
— Eu não me lembro de mais nada. Sei que acordei exausto, no mesmo beco, com esta carta em meu bolso.
— E o que a carta diz?
— ‘Ainda farei você ter uma noite de amor comigo, encarando a beleza que a morte pode ter. Visitar-lhe-ei no próximo carnaval, e lhe trarei comigo. Pois tu és meu.’
— Ui, que fogosa ela. A sua história é muito boa, de fato. Tão boa que me acalmou os nervos. Vou dormir agora, fique à vontade para ficar aqui, ir para o quarto, visitar a biblioteca, enfim. Boa noite, amigo!
— Boa noite, Juan.
Na manhã seguinte, João desapareceu.

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