No segundo andar de um sobrado, uma janela aberta dava vista para a plantação de trigo. No alto do céu poucas nuvens navegantes sob uma brisa noturna e gelada, iluminadas com a luz da lua crescente.
Os raios prateados entravam pelo cômodo, servindo como a única forma de clarear o quarto antigo, até metade da cama de casal. A casa era antiga, feita de alvenaria, em um estilo colonial, mas com pisos de madeira. O cheiro de madeira velha misturava-se ao cheiro de velhice do corpo e da alma. Deitada na cama, Jandira respirava com dificuldade, no auge de seus noventa e dois anos. O que lhe restava era a espera do anjo a morte para carregar sua alma.
Nos seus moveis, ao lado da cama, não haviam fotos, nem mesmo lembranças ou enfeites. Tudo era bem simplista e malconservado. As paredes já traziam o mofo e o bolor preto que se espera. No chão de madeira arranhado e fundo, partes soltas do piso contrastavam com as manchas de sangue seco, que deviam estar ali há décadas.
Era um lugar realmente desagradável.
— Finalmente. — Sussurrou uma voz, vinda da janela.
— En-entre, meu amor. — Balbuciou Jandira, para a silhueta em seu parapeito. Esticou a mão enrugada e magra, dando ênfase ao convite.
Silenciosamente, um vulto alto e esguio flutuou para dentro do ambiente. Pisou levemente nas madeiras corroídas do chão, sem ao menos soar qualquer rangido. Seus olhos cintilantes fitaram a idosa por longos minutos de silêncio.
— Veio, enfim, conceder-me a sua vida eterna, Dirceu? — A voz sumia entre um suspiro pesado e outro.
— Sua alma viverá no inferno, bem longe de mim.
— Não fale assim… Estou velha de mais para essas discussões. Preciso viver, ande, me transforme!
Dirceu sorriu com desdém. Caminhou ao redor da cama, encarando a moribunda com prazerosa malí cia. Se deliciava com a respiração trôpega, com o coração fraco e os pulmões vacilantes. Sentia o leve odor da morte pairando sobre a carcaça que, em breve, seria só uma casca vazia.
— Por mim sua morte é pouco, maldita. Gostaria de parabenizar o verme que primeiro comer suas carnes frias.
— Você sabe o que acontecerá comigo quando eu partir? — Uma lagrima escorreu na face murcha.
— Fiz questão de conhecer exatamente o curso de sua alma no além-vida. Me deleitei na ardente expectativa do fogo que te consumirá, quando ao inferno descer.
— Benzinho, mas tudo o que fiz foi para assegurar sua vida ao meu lado! Não me culpe… Não me queira mal.
— Jandira, já tivemos essa conversa nos últimos sessenta anos. Eu estava pronto para morrer, nunca quis que me trouxesse de volta.
— Mas eu não suportaria te perder! Eu dei tudo para que voltasse dos mortos. Para que vivesse! Agora é imortal e me maltrata, aquela que só quis seu bem.
— Meu bem? — Avançou com fúria demoníaca para cima da mulher. Seus caninos pontiagudos se assemelhavam a lâminas, mas deteve-se a poucos centímetros de distância. — Maldita proteção! Se eu pudesse feri-la, já estaria enterrada junto com minha família há décadas.
Recuou para o canto escuro do cômodo. Fugindo da luz do luar, pois não queria que a mulher o visse, para não ter algum prazer em sua presença. O vulto escuro mesclava-se com o mofo das paredes.
— Em toda essa vida nova, andando apenas a noite, pude ver muitas coisas. Vi a perversidade humana e também a dos monstros. Vi sangue e vi prazer. Um mundo avesso, onde gozo e lamento podem fazer parte do mesmo ambiente. Sorvi muito disso. Me misturei a essa vida nova que me deste. Nunca pedi por isso, mas se aqui estou, aqui viverei. —Refletiu sobre sua condição.
— Eu te dei essa segunda chance. Sacrifiquei muito por ti. Almas e mais almas. Sangue, pactos e dores. Crianças e velhos. Dei do meu sangue. Tirei as minhas lágrimas e vendi a minha alma para que assim fosse. Para que você vivesse — Tossiu — Vivesse comigo. Não aceito que o único benefício recebido dessa maldição, seja não poder ser morta por suas mãos.
— Não aceita? — Murmurou. — Eu me tornei essa aberração noturna contra a minha vontade. Sem meu consentimento, por causa de um capricho seu. Você não tem que aceitar nada!
Jandira engoliu, com dificuldade, o excesso de saliva em sua boca desdentada. A voz estava falhando e percebeu o corpo pesar. A morte vinha em sua direção. Pela primeira vez, em mais de meio século, sentiu culpa.
— O que devo fazer para, pelo menos, morrer com seu perdão?
Dirceu recebeu essa pergunta com incredulidade.
— Perdão? Não há nada, Jandira. Morra com isso. Morra entupida por seu egoísmo. Morra com dores e mágoas. Não quero que sinta nenhum único tipo de consolo. — Deu um passo furioso em direção à cama — Em todos esses anos me esforcei por privar você de qualquer mísera gota de esperança e alivio. Cada pessoa com quem se relacionou e desapareceu por minhas mãos. As mortes de suas irmãs, violadas por mim e sem direito a um enterro digno. Seu pobre pai arremessado para o fundo do lago. Amigos, vizinhos, alunos. Todos que vieram ao seu encontro, receberam minha visita. O sangue de seu irmão caçula que mancha esse piso de madeira. Mortes que estão em suas mãos, que pesam a sua cabeça.
— Por favor, pare! Me deixe morrer sem essa visão.
— Ah, não! Quando nosso filho implorou para você não o esfaquear no círculo do ritual, você parou? Quando me deu de beber o sangue dos meus pais, para servir de primeira refeição nessa minha nova vida, você ponderou parar? Pensou em não me dar a visão do inferno, cada vez que levou uma pessoa para ser morta por este vampiro faminto nas primeiras semanas? Todas as vezes que violou meu corpo cadavérico enquanto eu estava desnorteado de fome, a mercê de suas mãos doentes, você sentiu culpa?
Havia uma saliva rubra saindo da boca do vampiro. Salivava de prazer, por ver a velha se retorcer com lembranças amaldiçoadas. Memórias antigas, mas ainda assim tão vívidas. Todas vermelhas, todas sangrentas, todas com morte. O coração pesava mais no peito da mulher, as forças se esvaiam, mas não com a velocidade que desejava. Ironicamente, a morte pareceu fugir-lhe das mãos, mesmo sendo sua companheira em toda a vida.
— Por isso, minha doce Jan, eu nunca a perdoarei. Apesar disso, nunca a abandonei. Sempre estive com você em todos esses anos, fazendo uma trilha de sangue por onde passava. Tirei tudo o que pude de você, deixando que sobrasse apenas eu. Não era isso que queria? Que eu ficasse ao seu lado por todos os dias de sua vida? Jamais te darei o gosto da vida eterna comigo, pois quero tornar, finalmente reais, às palavras que dissemos no altar: “Até que a morte nos separe”. Ela irá separar, mas enquanto não chega, aqui permanecerei.
— Vou para o túmulo com isso então. Sabendo que, de um jeito ou de outro, vivemos lado a lado. Vivemos sendo parte um do outro. Esse jogo doente em que nos colocamos permitiu isso e nada mais. Tenho um pouco de contentamento ao saber que fomos um inferno mutuo. Mas, enquanto eu caio dessa realidade, para uma inferior, você permanecerá aqui e viverá comigo em seus pensamentos. Eu te amei até o fim e você não pode me negar sua presença, mesmo que doentia.
Silêncio.
Silêncio por meia hora.
Dirceu reconheceu estar preso neste ciclo de vingança sutil por muito tempo. Impedido de matar sua “criadora”, decidiu que a veria envelhecer e morrer lentamente. Morrer em todos os sentidos. Roubou dela a vida, ao privá-la de viver com outras pessoas. A cercou de solidão e obscuridade, para que não houvesse descanso para a mente nem para o corpo.
Jandira até tentou fugir das mãos de sua criatura, mas nunca conseguiu ir longe demais. Onde quer que fosse, seu amado a perseguiria. Sem que houvesse saída, a mulher decidiu viver na velha casa de família, nos últimos 30 anos. Em todos estes anos nutriu ainda mais paixão pelo monstro. Um sentimento pervertido e perverso que a prendia com ele. Será que a maldição a enfeitiçara também?
Por que, ao sentir culpa, sentia prazer? Ao saber as atrocidades cometidas, visando seu mal, por que aumentava em desejo por seu querido Dirceu? Havia algo de errado com sua mente e sua paixão, não tinha dúvidas. Nunca deixou transparecer ao seu amor, mas sempre ansiava pela perversão noturna da violência, cultivada em seu nome.
Enquanto Dirceu a amaldiçoava, segurando sua mão, no leito de morte, Jandira chorou uma singela lágrima. O vampiro desejou ardentemente que a lágrima fosse de culpa e desesperança. Mas a mulher sabia que, na realidade, a única coisa capaz de sentir naquele momento era o mais tenro e paradoxal prazer.
E então, expirou de seu corpo, deixando Dirceu sozinho na escuridão do quarto. Na vida tenebrosa e eterna que o aguardava em perturbadora solidão.
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2 avaliações encontradas.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
PLOT
– o plot é razoável; acontece pouca coisa e todas giram em torno do mesmo tema.
EXECUÇÃO
–
ESCRITA
– vírgula em: “No alto do céu”; “Por mim sua”; “Em todos esses anos”;
– sem vírgula: “uma voz, vinda”; “dessa maldição, seja”; “ao seu encontro, receberam”; “dessa realidade, para”;
– “do anjo a morte” (da morte)
– “não haviam fotos” (havia)
– “ali há décadas” (havia)
– minúsculas: “Sussurrou uma voz”; “Balbuciou Jandira”; “A voz sumia entre”; “Uma lagrima escorreu”; “Avançou com fúria”; “Refletiu sobre”; “Tossiu”; “Murmurou.””;
– trocar “sem ao menos” por “sem sequer”; “de mais” por “demais”;
– malí cia
– “apenas a noite” (à)
– ponto depois de “tossiu”
– “a mercê” (à)
– “esvaiam” (esvaíam)
– “mutuo” (mútuo)
– trocar “neste ciclo” por “naquele ciclo”
– “Em todos estes anos” (aqueles anos) (e vírgula)
– tirar pontos antes do marcador
ESTILO
– a linguagem é boa; o narrador, não
– tem muita exposição, especialmente no final.
– não precisava de “Era um lugar realmente desagradável”; “Refletiu sobre sua condição”; “Impedido de matar sua “criadora”, decidiu que a veria envelhecer e morrer lentamente. Morrer em todos os sentidos. Roubou dela a vida, ao privá-la de viver com outras pessoas. A cercou de solidão e obscuridade, para que não houvesse descanso para a mente nem para o corpo”
DESAFIO
– Como discutimos no vídeo, nem sei dizer se cumpre o desafio de verdade, se há um conto de amor. Mas seguindo a perspectiva do Rayhan, concedendo esse ponto, ainda assim passaria raspando. Explico: no máximo, o conto seria sobre um momento DEPOIS do amor (que não aparece no conto).
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Gostei bastante do conto, fiquei bem entretido. No entanto, como alguém que consumiu muito sobre vampiros nos últimos tempos, fiquei um tanto quanto encucado com a maneira que o autor sugere a transformação da criatura, pouco condizente com o folclore conhecido. Além disso, acho que existe um furo de roteiro porque, se a intenção de Dirceu era acabar com Jandira, mesmo que ele não pudesse se aproximar dela, ele poderia arremessar algo ou até mesmo contratar alguém para dar cabo da velha. O vampiro stokeriano, o mais famoso dos tipos, pelo menos, é uma criatura que essencialmente nega a Deus, ou seja, não basta simplesmente que seja forçada a surgir do nada; para se transformar contra a sua vontade, seria necessário outro vampiro, amaldiçoando a pessoa independentemente de sua fé, o que não parece acontecer aqui.
Eu gostei da maneira como o autor escreve, mas há diversos erros de ortografia e norma culta que prejudicam o efeito de uma prosa estilosa e bem ritmada. A sugestão que eu deixo é usar o Chat GPT 5 ou Claude Sonnet 4 para resolver essas questões, além de ficar de olho nas dicas que damos em nossas transmissões ao vivo.
Com relação ao desafio em si, não esperava que alguém o cumpriria de maneira tão trágica, mas confesso que curti muito essa dinâmica no conto.