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Carnaval Feliz: Cicatrizes e Alegrias

Meu primo Murilo tinha 6 anos quando, pego de surpresa e rodeado por vários tios e tias, viu-se pressionado a responder sobre o que queria ser quando crescesse. Num primeiro momento, ele só se calou, indeciso e sem compreender o motivo das risadas e tantos palpites de profissões que ele não conhecia. Até que, por fim, ele respondeu, calando a todos.

— Posso ser pessoa?

Doze anos se passaram e, dali em diante, por sua causa, nunca mais fui pego nessas enrascadas. Até virar cristão.

*****

O retiro se aproximava e a expectativa entre os jovens crescia. A cada domingo, eles o citavam mais, tentando me convencer a participar. Enquanto a maioria mal podia esperar aquele fim de semana, eu não conseguia encontrar motivos para ir. Observava as expressões de entusiasmo e me sentia um estranho.

As conversas sobre gincanas e momentos de adoração inesquecíveis me deixavam distante. Eu me via sentado à mesa, ouvindo risadas e relatos animados, mas a sensação de estar desconectado daquelas palavras era avassaladora.

— Você vai, né? — perguntou Josi. — Vai ser muito bom! 

— Ah, eu estou pensando ainda.

Não quis parecer rude. A verdade era que, no fundo, eu só não queria ir.

Na manhã seguinte, liguei a televisão, pensando em como eu queria me sentir vivo como eles. Encontrei outra coisa.

O jornal falava sobre o carnaval que se aproximava: imagens de gente dançando, cores explodindo e sorrisos escancarados. Pareciam felizes. Eu mal conseguia pensar em como seria.

— O carnaval tá chegando — comentou minha mãe. — Você não vai querer sair um pouco?

Ela não era evangélica. Ouvindo aquilo, uma decisão brotou em mim. Fiquei em silêncio, esperando o dia chegar. Um dia antes, fui pressionado de novo.

— Não, não vou — respondi firme. 

— E só hoje você avisa? — disse Everton.

A minha resposta tinha saído já com um tom de alívio. À parte das promessas do retiro, me permiti aceitar meu único desejo naquele momento.

Na manhã seguinte, não me sentia animado para nada. Fiquei um bom tempo na cama, só olhando para o teto. Esta vida é só isso mesmo.

O problema começou a se desenhar com mais clareza quando, de tarde, fui à igreja pegar um livro que o pastor havia me recomendado, do pastor Wilson Porte Jr. Saindo do escritório, ouvi vozes animadas na sala ao lado. Um grupo conversava sobre o retiro. Parei atrás da porta.

— Você soube que o Fernando não vai ao retiro? — perguntou Jefferson, com uma risada nervosa.

— Tem irmãozinho querendo pular carnaval! — Josi ironizou.

— Quem não tem Jesus, cedo ou tarde, acaba procurando felicidade no mundo — disse Marcelo, um dos diáconos mais antigos.

— Eu tô brincando, Marcelo. Ai, credo.

— Mas é complicado. Tem pessoas que saem do mundo, mas o mundo não sai delas — disse Everton.

Foi um golpe no estômago. Estavam zombando da minha fé? Aquilo não mudaria a minha decisão: eu passaria o carnaval em casa. Fui saindo sem ninguém me ver. 

Naquela tarde, as crianças da igreja tiveram programação. Enquanto saía, vi um grupo se divertindo, pulando e dançando. A alguns metros, estava a Luma — 6 anos, filha da Luísa. Ela sorria, mas admirava a diversão de longe. Eu nunca tinha falado com ela, mas meu coração reconheceu a sensação.

Fui até a menina:

— Por que não está com eles?

— Ah, não tô com vontade de dançar. Não gosto.

Resisti ao impulso mais natural, percebendo que a minha missão não era convencê-la a entrar na dança, mas dar-lhe a “permissão” de não participar.

— Como é que eles gostam disso, né? Mas tá tudo bem, deixa eles.

Ela riu junto comigo.

A Luísa nos viu conversando e sorriu pra mim enquanto eu ia embora.

Quando cheguei em casa, descobri que a minha mãe não estaria presente no carnaval; sairia com umas amigas. Comecei a antecipar a solidão.

E o primeiro dia de retiro chegou.

Durante a tarde, a televisão foi a única companhia. A apresentadora sorria e falava sobre expulsar a tristeza. Com aquilo? Desliguei.

O celular tocou, era Josi. Ela começou a falar sobre o retiro, os momentos de adoração e as brincadeiras.

— Oh, você faz falta!

Ela tentou me convidar novamente, dizendo que ainda dava tempo de ser feliz. Foi só uma piadinha, mas fiquei sem palavras.

Como eu explicaria a ela? Talvez se eu dissesse que eu sempre via a felicidade dentro de mim, mas lá, quietinha, brincando num canto da sala com pecinhas de montar: dá vontade de sentar junto, abraçar, mas se eu chego perto, ela chora e corre para a mãe, porque é tímida. A felicidade parece gostar de brincar sozinha.

Depois da ligação, eu me peguei pensando se a alegria deles era genuína ou apenas um escudo contra as frustrações da vida, uma fachada escondendo medos e inseguranças. Guardei isso comigo.

No domingo depois do retiro, fui me preparando pra uma enxurrada de frases chatas de lidar. Eu já entendia que a alegria da vida cristã não eliminava a tristeza, só não conseguiria — e não arriscaria — explicar.

Vi Marcelo conversando com alguém que parecia estar em crise. Eu não sei qual era o motivo, mas pude ver o quanto ele se importava. Aquele era um homem de Deus. Foi quando a primeira ficha caiu: quem sabe, a verdadeira força da comunidade, daquele corpo, não estivesse nas risadas, mas na capacidade de ouvir e estar presente nas dores uns dos outros?

Como o ônibus chegou em cima da hora, não falei com ninguém. Alívio. Mas o dia ainda não tinha acabado.

Durante os cânticos, todos pareciam mais animados do que de costume. Eu os observava como se estivesse assistindo a uma peça teatral. Vi que muitos deles me olhavam o tempo todo. Quando a pregação chegou, eu estava distraído com isso e não vi que passagem seria usada. Então o pastor começou a falar sobre como a alegria real não depende das circunstâncias, e eu tomei um choque.

A experiência de vida de muitos cristãos genuínos nem sempre corresponde a uma vida gloriosa. Muita gente não experimenta a bondade divina todos os dias, mas isso não muda o fato de que Deus está presente.

Por que logo esse tema? Ele falou sobre aceitar os altos e baixos da vida, assim como o apóstolo Paulo, e que Cristo carregava marcas de sofrimento, que eram de sua maior obra, a maior obra de amor já feita. 

Na verdade, quando não há sofrimento, esse é um estado anormal na vida cristã; nós seguimos o Jesus das cicatrizes!

Ansioso, saí para beber água. Quando voltei, fiquei ainda mais surpreso, com uma leitura adicional em Apocalipse 3, terminando com o verso 17:

Pois dizes: Estou rico e abastado e não preciso de coisa alguma. E nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu.

Eles eram infelizes, mas… não sabiam! Puxa.

Como é que aquelas pessoas eram infelizes e não sabiam? Se a infelicidade é algo que a gente sente, como eles não sabiam? E o pastor pareceu prever as perguntas.

Eles tinham uma série de bens em volta de si, muita riqueza e entretenimento, anestesiando o sentimento de tristeza. Ou seja, mesmo sem sentir a tristeza, que estava maquiada, eles eram infelizes.

Comecei a pensar que a pregação era para aqueles jovens que, talvez, fossem tristes e não soubessem. E foi aí que veio outro choque.

Eu tive uma conversa longa com a Luísa esses dias sobre qual é a verdade sobre nós, cristãos. Em que nós somos diferentes? É que nós somos felizes. Sim, somos. Mas nem sempre nós sentimos, não é? A minha cabeça não me deixa em paz, a vida não é boa e eu tenho saudade do meu paizinho. Aqui, ainda tem muita coisa pra soterrar o sentimento de alegria. A minha alegria mesmo é a certeza de que um dia Ele enxugará do meu rosto todas as lágrimas e o pecado será arrancado de mim.

Eu tinha esquecido da regra básica: a pregação nunca é para os outros. Tive que me esforçar para não molhar o rosto.

Quando a celebração terminou, alguns jovens se aproximaram de mim; entre eles, a Josi. Com um sorriso, ela perguntou:

— E aí, você vai na próxima?

— Posso não ir?

O pastor passou por nós acompanhado do diácono Marcelo, que não ouviu a pregação, pois estava cuidando das crianças em uma sala nos fundos. Rindo, ela aproveitou:

— Olha aí, pastor. Não quis ir no retiro e nem deu desculpa.

Daí em diante, ela se manteve em silêncio, pois quando o Marcelo começou a falar, parecia estar com aquilo entalado. Mas eu também estava.

— Às vezes, a gente se engana, pensando que a felicidade do mundo é verdadeira. Mas só a felicidade em Jesus é que…

— E essa felicidade é obrigatória? — respondi de pronto.

— Devia ser natural, não? Digo, automática.

— Mas ela é uma coisa que deve ser verificada pela aparência ou que você recebe pela fé? E essa felicidade duradoura está em você ou além de você?

Marcelo ficou confuso; o pastor não o esperou responder:

— Marcelo, a felicidade não é um fardo. A verdade é que nem sempre a alegria está no coração de quem já conhece a Jesus.

Que coragem.

— Nossa, como o senhor diz uma coisa assim?

— Você nunca sente dor e tristeza?

— Claro que eu sinto, mas em geral…

— E Jesus falou de um percentual mínimo de alegria que a gente tem que sentir?

Diante do silêncio, o pastor continuou:

— Nós temos a mesma fé dos mártires. Você entende isso? Abre aí em Hebreus 11. Começa a ler do 25.

Com bom manejo, abriu e já começou a leitura:

Houve mulheres que, pela ressurreição, tiveram de volta os seus mortos. Alguns foram torturados e recusaram ser libertados, para poderem alcançar uma ressurreição superior.

— Até onde?

— Mais um pouco.

Outros enfrentaram zombaria e açoites, outros ainda foram acorrentados e colocados na prisão…

— Olha aí.

…apedrejados, serrados ao meio, postos à prova, mortos ao fio da espada. Andaram errantes, vestidos de pele de ovelhas e de cabras, necessitados, afligidos e maltratados.

O mundo não era digno deles.

Antes que ele respondesse, tomei a palavra:

— Marcelo.

Ele estava tão sem graça quanto eu. Firme, continuei:

— Eu sei que existe uma alegria que já está decretada, confirmada, que chegará a nós e durará pra sempre. Eu sei. Eu sei que nós participaremos dessa alegria e que ela já é nossa. Mas será que eu sou maluco ou, às vezes, deste lado aqui da eternidade, nesta vida, nem sempre o nosso coração corresponde completamente àquilo que nós já somos plenamente em Cristo?

O diálogo que se seguiu foi só entre ele e o pastor, enquanto eu só ouvia.

— Sim. Mas, em Cristo, nós já temos a plena e profunda alegria…

— Mas nem sempre nós somos aquilo que nós já somos.

Como é que é?

— Em Cristo, nós já somos perfeitamente felizes, assim como já somos santos. Santos que, agora, ainda pecam. Não é?

O irmão estava confuso. O pastor mudou de exemplo:

— Por acaso Jesus disse “pegue a sua bola de praia e me siga”?

— A cruz, né? — virou-se para mim. — Mas, irmão, você quer ser um crente triste ou um crente feliz?

Foi a deixa da minha vida. 

— Posso ser só crente?

Senti que meu queixo tremeu. Ele apenas encheu os pulmões de ar e não disse nada. Continuei:

— Eu sou feliz, eu só não sinto ainda. Eu sei que eu tenho essa felicidade, só me permita não sentir nada agora.

— Complicado — ele comentou.

O pastor bateu a mão nos nossos ombros, piscou para mim e chamou ele de canto.

Meu coração não aguentava mais muita coisa e fui caminhando em direção à porta. Fui me despedindo enquanto saía, recebendo apertos de mão e alguns abraços que eu não esperava. A Josi correu até mim para um último comentário:

 — A gente sempre se alegra mais quando está todo mundo junto, viu?

O que será que rolou no retiro?

Bem, de fato, eu não estava sozinho. Naquela comunidade, risos e dores se misturavam. Vi Luma brincando, correndo com outra criança; me senti tão bem. Eu já estava em casa, na casa do Pai. 

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