Da laje de casa, a favela emoldurava o menino a encarar o firmamento. Ele tinha sonhos, sonhos que pincelavam o mosaico de estrelas com o brilho de seus olhos. Cada pontículo doirado era uma laje celestial, esperando os viajantes para um churrasco cósmico com os amigos do espaço. A vastidão do universo era o berço de sua inspiração, o silêncio musical a traçar notas no silêncio da mente, como se as órbitas dos astros fossem o palco do astro que ele mesmo desejava ser.
— Gael, vem comer, filho! — disse a mãe, debruçada sobre a janelinha da varanda. — Rápido, senão esfria.
— Já vou, mãe! — Gael disse. — Só mais um pouquinho.
Saber que seria pouco doía, pois enquanto se perdia na imensidão do espaço, o tempo parecia uma vírgula a conectar os astros mais exóticos. Poderia encarar cada um daqueles pontos e dizer a si mesmo que enquanto observasse o infinito, parte dele viveria para sempre. Então a dor sumiria, porque o que seria ela, comparada a dor de uma vida sem música? Aliás, Gael pensou: se as estrelas ouvissem música, qual seria sua dança? Uma supernova de movimentos explosivos, a entropia caótica a bailar sobre o nada e, através do nada, o tudo ser, possibilitando os sonhos daqueles que agora os observavam.
Sim, ele tinha sonhos.
E como se o universo quisesse acordá-lo, uma estrela cadente cruzou o horizonte, arranhando a noite com seu rastro de fogo. Gael estendeu os dedos para o brilho, como se através daquela faísca atmosférica ele pudesse flutuar em direção ao único vazio que o preenchia. Sua mão eclipsou o ardor viajante, os dedos fingindo segurar o que quer que fosse aquilo.
A estrela fez uma curva, mergulhando em sua direção; o zumbido que emitia ululava com a noite carioca. O Cristo Redentor poderia cruzar os braços como um colosso, e ainda assim não o teria impressionado tanto quanto a esfera a pairar sobre si.
A superfície era lisa como um espelho mas, ali, Gael não tinha controle do seu reflexo. Porque não era seu reflexo. Quem quer que estivesse ali, estava com tanto medo quanto ele. A pele verde daquela criatura era como o campo de futebol da praça. Os olhos, quase tão amarelos quanto os postes das ruelas que serpenteavam o morro em que vivia. Seus cabelos, roxos como chiclete, brilhavam com o corante do desconhecido. As madeixas pareciam flutuar.
Era uma garota, a mais bonita que jamais vira.
Estendeu as mãos. A esfera pareceu desabrochar para que a flor pudesse sair de encontro a si, seu perfume indizível preenchendo a alma com ecos de um passado nunca vivido. Quando a ponta de seus dedos se encontraram, uma faísca os afastou. O calor tropical de uma pele acabava de encontrar o frio aconchegante de outra. Mas o sorriso que compartilharam em seguida foi universal, e não tardou para que o encontro de suas mãos amainasse as incertezas.
— De onde tu é? — perguntou Gael.
Ela olhou para cima, apontando e sussurrando algo que Gael não entendia. Mas compreendia. Arremessada de uma caravana cósmica, a sua nave veio parar aqui. Escondida em nosso sistema solar, parte de uma expedição à procura de um deserto para chamar de seu, para inundar com sua tecnologia e saber um novo porto seguro para um conclave de povos preocupados demais com seu próprio progresso para dirigir sua atenção aos humanos.
Fascinado pela narrativa da exploradora, Gael compartilhou as desventuras de seu povo. Contou sobre a vida que tinha, o futebol que jogava, as coisas que estudava, a música que fazia, da favela para favela, e até trouxe um prato de feijoada para ela. A mãe não entendeu:
— Tô te ouvindo daqui de baixo. Tá falando com quem, querido?
— Com uma alienígena — respondeu ele.
A mãe riu:
— Tá, tá. Só não esquece de dizer para ela que você tem que lavar o prato, também!
A feijoada da mamãe era tão boa que até a alienígena gostou. Gael mostrou a bola de futebol. Fez embaixadinha e pegou uma pipa. Ensinou-a a brincar e juntos ficaram ali, como se o mundo fosse deles. Porque o mundo era deles. Enquanto respirassem o mesmo ar, compartilhassem sabores, versos, enfim, enquanto seus corações batessem, seriam parte do tudo. A noite alcançou se auge e, quando o sono começou a pender os olhos da convidada, sentiu seu rosto sobre o peito. A esfera emitiu um som, tênue. Os dois sabiam que a hora da despedida havia chegado.
Enquanto ela sussurrava seu adeus, Gael a beijou nas bochechas. A convidada sorriu para o anfitrião. Na noite seguinte, ela reapareceu. Outra noite, outra visita. E outra, e outra, e outra. Até que dias viraram semanas. Até que semanas viraram meses. Até que meses viraram anos. Aos poucos, conseguiram se comunicar. Seu abraço virou beijo, e seu beijo ficou mais doce, para que somente então o abraço compartilhado ficasse mais ardente.
Gael guardara aquele segredo como guardara o amor por ela, escondendo seu tesouro numa nebulosa insondável. Seu coração era apenas dela. A mãe já estava incomodada com o fato do filho não ter nenhuma namorada, nenhum amigo além dos livros de ficção-científica, matemática, física, química, etc. que pegava emprestado na biblioteca da faculdade.
O que a mãe não entendia, era que o homem com livros nunca estaria sozinho, pois o amor de um leitor é um amor vivido mil vezes; o amor de um leitor sempre seria o mais puro, o mais poderoso, pois aquele que ama através das memórias de outrem se dará por completo ao momento, mesmo que o momento não se entregue de todo para ele. Assim, será fácil saber onde está o amor a ser vivido, pois o amor verdadeiro anda por si só, como uma estrela que se finge cair para que seu brilho encante o observador que almeja navegar por seus mares misteriosos.
Não demorou para que ele descobrisse que o acidente de sua companheira, de acidente nada tinha. Mas nessa tempestade de sentimentos, Gael se afogava na maciez verde de sua musa, que com palavras ininteligíveis segredava um amor impossível; pois ele era da quebrada, e ela era da nobreza; um ficava na zona norte de uma selva de tijolos, a outra ficava nos arranha-céus de um astro cor de sangue, a aristocracia de um império galáctico.
Somente uma coisa era capaz de unir povos tão distantes. Um baile funk. Quando a ideia primeiro surgiu na mente de Gael, não pôde deixar de rir de si mesmo. Sua musa não entendeu, mas a música era capaz de viajar através do corpo em uma corrente única.
Se um alienígena pudesse gostar de funk, o amor deles não seria impossível. Preparou sua música, pedindo ajuda para todos os MC’s que conhecia. Gael chegou para eles desse jeito:
— Coé, galera! Se vocês tivessem que fazer um baile funk em Marte, como seria a música?
Eles não acreditaram:
— Tá fumando qual erva, Gael?
— Nenhuma. Mas, imaginem se vocês pudessem fazer um baile funk em Marte, como seria a música?
A empreitada começou. O título da música ficou intuitiva: “Sarrada Intergaláctica”. Ele até coreografou um passinho: consistia em juntar os pés e flexionar os braços como se fosse uma nave com o gingado mais estiloso da galáxia. Sua musa gostou. Era impossível não dançar. Foi então que Gael decidiu fazer sua proposta, pois sua musa igualmente recusava outro amor que os pais a propunham, provando que seu amor pertencia a um único ser.
Ela aceitou.
Gael pegou emprestado uma caixa de som e uma mesa de DJ. Quando a nave atracou na laje de casa, sua musa saiu para cumprimentá-lo. Estava radiante, seu vestido como chumbo derretido com arabescos em diamante. Gael vestia o seu melhor terno, pois o estágio da faculdade lhe dava o conforto que a música ainda não permitia. Juntos, favelado e alienígena tomaram rumo em direção às estrelas.
A nave atravessou o sistema solar até encontrar o gigante vermelho, a atmosfera sangrenta atravessada por um painel que camuflava civilizações inteiras à plena vista, nuvens metálicas igualmente capazes de se camuflar dos satélites e telescópios humanos. Dos arranha-céus, conclaves de espécies fantásticas viviam e trabalhavam. Dentre eles, os membros da família de sua musa.
Num palácio de jade os nobres aguardavam o convidado. Era a primeira vez que uma alienígena se apaixonava por um humano, mas o amor somente seria aprovado se pudesse ser reconhecido e compartilhado por aqueles responsáveis por viajar as estrelas em busca de lares inóspitos.
O MC Gael vestiu um traje especial e se apresentou junto de sua princesa num salão recheado de criaturas místicas, seus olhares intrigados para com o funkeiro desconhecido. A musa sussurrou a chegada de seu partido, e os membros de sua família o escrutinaram. O patriarca da família parecia perguntar:
— O que este humano traz consigo?
A musa respondeu:
— Um funk.
— Que tipo de armamento é esse?
Mesmo que não entendesse, Gael sabia que sua arma era a mais forte de todas. Sem disparar, era capaz de mover nações. Capaz de transformar tristeza em alegria. Capaz de unir, falar com milhões em qualquer língua, código, desde que aquele que escutasse seu disparo pudesse ouvi-lo chegando e, ao ser atravessado, a única dor que sentiria seria a de não poder ser atingido eternamente pela melodia, pois um dia morreria, tornando-se ele mesmo música na imensidão cósmica.
Felizmente, a caixa de som estava carregada. A mesa do DJ foi conectada e a estática fez os guardas apontarem suas armas, com medo. A musa acalmou a plateia:
— Apenas prestem atenção.
A matriarca da família perguntou:
— Como veremos esse funk?
A musa sorriu:
— Com os ouvidos.
Com um gesto de sua amada, o MC Gael começou seu trabalho. A primeira batida fez todos pularem, até que, contagiados por uma melodia hipnotizante, alguns alienígenas começaram a se remexer. Gael cantou, fazendo um gesto de bater de palmas. De repente, milhares de alienígenas batiam palmas (ou, pelo menos, aqueles que as tinham) em uníssono com a música.
A musa convidou os nobres a dançarem, apresentando-os para o seu partido. Gael os ensinou o passinho da dança. De milhares de alienígenas, vindos de todo canto do universo e, até então, ignorantes da sagacidade musical da raça humana, cantavam e dançavam aquele funk enquanto o MC Gael sorria, sorria porque sabia de seu potencial.
Porque sabia que nos morros das favelas o pobre poderia ficar mais próximo das estrelas que os ricos, e a música feita a partir de suas lajes era feita de coração, pois ao favelado poderia faltar comida, poderia faltar luz, poderia faltar dinheiro, poderia faltar roupas, poderia faltar educação, mas nunca faltaria música.
Nunca.
O casamento entre as espécies foi aprovado. Meses se passaram, e quando o casal voltou ao planeta de Gael com um bebê no colo, a Terra mudou para sempre. Avanços tecnológicos, expansão de território, além de inúmeros descobrimentos revolucionários. MC Gael entrou para a história, e sua mãe quase caiu para trás quando descobriu que a alienígena era real.
Gerações passaram, conflitos vieram, mas a música sempre esteve presente com os humanos. Todo ano, em celebração ao dia que mudou o destino da espécie humana, um baile funk era orquestrado em Marte. A cada ano, mais e mais humanos vinham para o planeta, e mais e mais alienígenas iam para a Terra, aprendendo eles mesmo a orquestrar seus passinhos.
E da laje de sua casa, o deserto emoldurava uma menina a encarar o firmamento. Sua pele verde e cabelos roxos voavam com a brisa da noite. Ela tinha sonhos, sonhos que pincelavam o mosaico de estrelas com o brilho de seus olhos. Cada pontículo doirado era uma laje celestial, esperando os viajantes para um churrasco cósmico com os amigos do espaço. A vastidão do universo era o berço de sua inspiração, o silêncio musical a traçar notas no silêncio da mente, como se as órbitas dos astros fossem o palco do astro que ela mesmo desejava ser.
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Avaliações
1 avaliações encontradas.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Achei muito bom esse conto. Foi bem elaborado, escrito e executado com uma história que nos prende do início ao fim.
Claro que nem tudo é perfeição, tem alguns erros ortográficos como a palavra “doirado” escrita duas vezes, uma vez no início e outra no final se eu não me engano, mas nada que altere ou prejudique essa obra-prima construída pelo nobre colega que enaltece a cultura brasileira e dar voz a esse povo mais carente que é esquecido e passa desapercebido por muitos de nós.
Por fim, não tem muito que falar do Rahyan ou colocar defeito em suas obras, sempre bem-feitas. Se tiver algo que possa comprometer, deixo para os nobres amigos de bancada pontuar.