A vida de Robert tinha ido para o ralo. A única coisa que lhe restava era um buquê de flores esmaecidas, surradas pelo amante da esposa em sua fuga do mais novo apartamento. Apartamento 50 do décimo andar. O apartamento que imaginou fazer o seu futuro, cheio de quartos vazios à espera de filhos.
Por que a vida lhe era tão injusta? Enquanto Bianca entrava no táxi, ainda de cabelos desgrenhados e maquiagem borrada do falso arrependimento que lhe escorria pela face confundindo-se com a chuva novaiorquina, Robert se ajoelhou.
O carro sumiu de vista, e o homem chorou à frente de todos. Como transeuntes habituados à correria do dia a dia, os cidadãos ignoraram o apaixonado sufocado por desilusões, tendo como único apoio um hidrante.
— Eu só queria ser feliz…
Não sabia se o desespero da infelicidade incitava um homem a ouvir coisas que não devia, mas pôde jurar que sentiu um hálito sedoso a sair do hidrante. A sugestão de um murmúrio se seguiu:
— Pelo menos você tentou. O arrependimento de não se esforçar, de não lutar pelo próprio amor, é muito maior do que o risco de se ferir.
Robert levantou a cabeça, procurando qualquer pessoa que estivesse próxima dali. Nada. Que tipo de brincadeira era aquela? Será que estava ficando louco?
— Acho que a tristeza brinca com meus sentidos — disse ele, ainda apoiado sobre o hidrante.
Foi quando sentiu.
Tum-tum.
Como um palpitar atado a outro sussurro:
— O amor de um homem é sua maior força e maior fraqueza. Tanto os que vi em meio inverso. Tantas mulheres que se apoiaram por sobre o meu seio para chorarem à procura de alento. E tu és o único marinheiro que deságua suas angústias sem temer o que os outros pensam.
Era o hidrante? Sim, ele tinha certeza. O palpitar estava lá, escondido por camadas e camadas de metal, soterradas pelas vibrações que os pneus de uma cidade movimentada gerava. Robert pegou o celular, fingindo ligar para alguém enquanto inclinava a cabeça contra o hidrante:
— Quem é você?
— É mais fácil me perguntar o que eu sou.
— Eu só percebo um hidrante.
— E eu só percebo o seu perfume. É cheiroso.
Robert sorriu. Tinha comprado o perfume havia duas semanas. A esposa sequer percebeu. Retirou a aliança enquanto absorvia aquela situação tão fantástica. Não o hidrante, mas sim o casamento. Como uma vida de sonhos, objetivos, prazeres, podia ser arruinada de uma hora para outra. Por motivos tão simples. Talvez esse fosse o segredo da felicidade: preocupar-se com as coisas simples.
— Você é uma coisa simples? — perguntou Robert ao hidrante.
— Não. Simplicidade é ausência de propósito. O que é uma gota de chuva? Nada. O que é uma nuvem encharcada de gotas a se escorrer sobre um jardim? É propósito. O que é um raio? Nada. O que é um poste de luz a injetar eletricidade por entre edifícios, alimentando a vida de centenas de milhões de pessoas? É propósito.
— E quanto a percepção? Simples é aquele que não percebe sua complexidade.
— Complexo é aquele que não percebe sua simplicidade.
Robert riu, e o hidrante riu com ele. Não acreditava que estava trocando sermões filosóficos cafonas com um hidrante sobre uma calçada encharcada pela chuva minutos depois de pegar sua esposa no flagra com outro cara.
— É, acho que sou aquele tipo de cara que acha que a vida é complexa de mais de vez em quando, quando na verdade ela possa ser mais simples do que eu imagino.
— Qual é a marca do seu perfume? — perguntou o hidrante.
Não foram as únicas perguntas que o hidrante fez. Depois do dia de trabalho no banco, Robert comprou um sanduíche numa barraquinha próxima da esquina do seu prédio e um refrigerante. Riu de si mesmo, mas não pôde deixar de admirar o brilho da lua a reluzir sobre a pele vermelha do hidrante. Quando chegou lá, disse:
— Trouxe um pouquinho de sanduíche, quer?
Um mendigo que passava próximo dali achou que o engravatado estava falando com ele:
— Quero sim, amigo. Obrigado…
Robert já preparava um tabefe quando o hidrante sussurrou:
— Pode repartir com ele, eu não preciso comer.
Relutante, Robert ofereceu parte do alimento ao mendigo, que saiu de fininho. Recostando-se sobre o hidrante, ele disse:
— Então, como foi o dia?
Toda noite, Robert fazia questão de separar algum tempo para visitar o hidrante. Quando não conseguia dormir, dava uma volta no quarteirão e parava para falar com o hidrante. Era um deleite não ter que se preocupar em esconder a voz ou disfarçar a risada. A noite parecia uma criança quando estavam juntos.
Dias se transformaram em semanas. Semanas se transformaram em meses. Meses se transformaram em anos. Robert tentou flertar com outras mulheres, mas o discurso delas parecia tão… superficial. Elas falavam sobre fofocas de televisão, bafafás de celebridades, algum seriado genérico de romance barato, ou algum livro onde uma mulher poderosa se deixava ser abusada por um homem completamente cruel.
Com os homens não foi melhor. Futebol, cerveja, carros, filmes recheados de violência ou uma versão homossexual dos mesmos seriados e livros que as mulheres com que se encontrava liam. Simples demais para não perceberem a própria complexidade.
Depois de algum tempo, desistiu de flertar. Baladas, aplicativos de encontro, bares, até piadinhas entre amigas de trabalho. Tudo ele evitou. Mas o hidrante estava lá para ouvi-lo. Até que uma noite, quando a bebida já tinha feito a maior parte do trabalho, Robert se virou para o hidrante, sussurrando baixinho:
— Sabe, nesses últimos dois anos desde que nós nos conhecemos, eu sinto que você é a única coisa que me entende de verdade nesse mundo.
Tum-tum.
Tum-tum.
Tum-tum.
O hidrante balbuciou:
— O-o-o que quer dizer?
— Você sabe muito bem o que eu quero dizer. Sabe, é bem difícil admitir isso. É o tipo de coisa que não esperei que diria para…
— Ai, Meu Deus, Robert, conta logo!
Robert riu com a ansiedade no tom de voz do hidrante. Mas a risada não foi o suficiente para esconder a própria ansiedade a se regurgitar dentro de si, como se milhares de borboletas alçassem voo de uma só vez.
— Posso te beijar? — Robert perguntou.
— Tá, mas espe…
Seus lábios encontraram o hidrante, e pôde jurar que os batimentos causariam uma explosão. Quando recuou, o hidrante disse:
— Isso… foi muito bom…
— Foi a sua primeira vez?
— Foi? Eu só não esperava…
Outro beijo. E outro. Quando Robert recuou de novo, disse:
— Eu te amo, hidrante.
— Eu também te amo, Robert. Mas o nosso amor não vai dar certo.
— Eu sei que não. Mas enquanto tivermos um ao outro, eu farei de tudo.
Robert abraçou o hidrante, encarando o mosaico de estrelas. Ele sabia que o futuro podia ser tão incerto quanto os sentimentos de um coração apaixonado, mas enquanto houvesse dúvida sobre o desfecho entre eles, haveria a possibilidade de um final feliz, e isso já era o suficiente.
Talvez a vida não fosse tão injusta, afinal.
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