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Onde o Frio Abraça a Morte

Arian cresceu acreditando que o inferno seria um lugar escaldante, recheado de labaredas para lamber as almas dos condenados, despindo-lhes de seu orgulho, avareza e luxúria. Foi por isso que se alistou, para ir à guerra contra os inimigos de um reino que acreditava justo; para honrar o nome da família; para prover dinheiro o bastante à esposa e filhas; para ter a dignidade que imaginava ser possível de ser conquistada com justiça.
Mas e quando a justiça não passava de uma ilusão congelada? Foi preciso derretê-la com o sangue dos tombados para fitar o papel odioso que tinha exercido, como um títere a dançar sob o fio da realeza. E da espada. O problema de cortar as amarras que lhe atavam à Saddev era ver a própria família a lhe expulsar de casa; marionetes cujos corações foram enregelados por mentiras quase tão gélidas quanto o povo que lhe governava.
Agora, sentindo a ossada dentro de si frígida como as faces dos mortos, ele sabia: o inferno era gelado. Mas o pior era que havia se acostumado com aquilo, com o lugar em que os ferimentos podiam ser curados; mesmo que as cicatrizes latejassem com lembranças olvidadas pelo vento que agora lhe cortava a face.
— Não vai demorar muito — disse ele, voltando-se para o pai a carregar a filha no colo.
O velho estava cansado demais até para falar. Mas não para carregá-la. Arian já tinha visto isso. Uma mãe a atravessar quilômetros e quilômetros com filhos no colo, seus pés em carne viva de tanto andar. Pais carregando esposas, bebês, cadáveres. Órfãos de guerra abraçados uns aos outros. Irmãos mais velhos ajudando os mais novos. O que lhes movia? Arian se recusava a acreditar que algo como o amor poderia existir num mundo tão cruel.
Mas se existisse, era por isso que estava ali. Para garantir que aqueles que não tinham nada, pudessem conquistar algo. Entretanto, para conquistar sua passagem, precisariam atravessar o mausoléu dos transeuntes. A ponte à sua frente teceu um arco, sustentada por estruturas ancestrais; até onde se sabe, velhas quando os homens já haviam nascido para semear o mundo com seu ódio.
O vento sibilou, balançando a extensão que ligava os picos montanhosos. As estrelas sarapintavam o firmamento como pontículos leitosos à deriva num mar trevoso. A nuvem de vapor condensado anunciou a chegada do pai:
— É essa a ponte?
— Não — disse Arian. — Mas ela nos levará até a ponte verdadeira.
O suspiro de cansaço o instou a prosseguir. Antes morto de cansaço, do que de frio, Arian pensou, pegando um cantil com aguardente de dentro da mochila. Estavam trôpegos de frio, mesmo com as vestes, casacos, botas, meias, luvas e gorros tecidos especialmente para regiões como aquela. A bebida lhes ajudaria. Tomou um gole e estendeu o cantil ao homem:
— Aqui, vai ajudar com o frio. Dê para ela, também.
— Obrigado — disse ele, entornando um pouco de bebida para dentro. — Aqui, filha, só um pouquinho. Vai te ajudar…
A respiração dela vinha em lufadas tênues, uma brisa prestes a evanescer com o último sopro. A bebida rosou as bochechinhas, ornando o humor dos homens com esperança. Ela lembrava a sua filha, antes de chorar sabendo que o pai era um traidor. Odiava ver crianças chorando, ainda mais quando a culpa era sua. Ver o sorriso de uma menininha era o suficiente para aquecer seu coração, se é que restasse um.
Ainda havia tempo.
A ponte rangeu sob os pés enquanto atravessavam, forçando-os a se segurar e ajoelhar a cada vez que o ar lhes esbofeteava. Durou duas horas. Quando chegaram à entrada do túnel que cortava a montanha, o breu os embalou. Arian acendeu a tocha, aliviado pelas chamas tremulantes a espantar a escuridão:
— Vamos descansar aqui. Prosseguiremos amanhã.
Montaram acampamento, derretendo queijo sobre o fogo, mordiscando carne seca e tomando goles esparsos de vinho para aquecer o corpo. Arian pegou o fumo do cachimbo e ofereceu ao pai. Enquanto a menina murmurava em seu sono febril, seu pai encarava as chamas e a caneca de latão a preparar o chá medicinal. O olhar dizia tudo: será que vamos conseguir?
— Vamos conseguir, Faruz — disse Arian, de repente, trazendo um sorriso de esperança à face do homem.
— Sim. É que… Eu me pergunto se o que eu fiz era certo. Talvez fosse melhor ter deixado eles a levarem.
Arian quase riu com aquela afirmação. Muito parecida com o que ele havia pensado em uma ocasião diferente. Em um mundo diferente. Em uma era diferente. Quase tão distante quanto o olhar que agora repousava sobre as labaredas. A diferença era que Arian sabia que o homem havia tomado a melhor decisão.
— Saddev não é mais a mesma, Faruz — disse Arian, remexendo a lenha. — Os soldados não a deixariam passar, não com o dom que ela tem.
— Ou maldição…
Arian não disse nada. Custou a acreditar que algo como aquilo fosse capaz. Tantas verdades poderiam ser jogadas na cara do povo com uma magia como aquela. Revoluções. Reformas. Protestos. Não passava de um sonho, mas passava da hora de dormir. Revesando com o velho senhor, dormitou com o vento da caverna a lhe segredar incertezas; pesadelos de suas cruzadas, das perdas que tivera.
Ali, até mesmo o tempo parecia congelado.
Os primeiros raios de sol atravessaram o sul da caverna. Fizeram uma refeição parca. Pelo menos Lindris se recuperou. Saddev tinha esse poder. Era com ele que contavam. Arian ajustou a mochila, dizendo:
— Será uma jornada longa. Vamos atravessar o vale a sul de Livoff. A porção leste é amena, mas temos que ganhar tempo. Chegaremos à ponte logo em seguida, ela corta o mar e os ventos podem ficar fortes. Acompanhem-me e, em hipótese alguma, afastem-se de mim.
Os dois aquiesceram. E a jornada começou. Antes do sol escalar o horizonte. Os vales se tornaram íngremes, as nuvens como tapetes a engabelar o passo de quem tentava prosseguir. Mas o treinamento militar ainda estava fresco na memória de Arian; sabia evitar pedras escorregadias, declives e trilhas falsas.
O mar martelou contra a costa do continente quando se deparam com a ponte. Parecia o topo do mundo. As árvores não passavam de pontículos verdes a balançar com o vento. O arco serpenteava o céu, ora para cá, ora para lá, debruçando-se e deslizando por cumeadas que intrigavam os viajantes, até que suas vigas mergulhassem em águas profundas, desaparecendo nas entranhas do mundo. Como ela havia sido construída? As respostas estavam congeladas, soterradas ou escondidas em algum iceberg.
O sol escalou o horizonte e se derreteu sobre a crista das águas enquanto andavam, as vibrações do oceano atravessando toda a estrutura da ponte. Fizeram todas as refeições caminhando. Não podiam arriscar encontros com soldados, não aqui. À noite, o trio de viajantes chegou aos vales que rodeavam o reino.
Mas a jornada não terminou. Estava apenas começando. Aqui, a vitória era uma questão de sobrevivência, e não sobreviveriam uma noite sequer naquele frio. Quanto mais avançavam, mais o gelo da noite anterior parecia morno em comparação. Precisavam de um abrigo o quanto antes. Arian tinha seus meios de atracar em porto seguro, mesmo quando ele estivesse congelado.
Avançaram pelo sopé de uma cordilheira, abrigando-se do vento por baixo dos capões dos pinheiros. A face da lua já rebrilhava sobre o chão quando ouviram os gritos. Alaridos de batalha, o som de espadas entremeando-se com rosnados; sons que faziam o coração de Arian palpitar numa miríade de alegria e medo: a ebriedade do caos prestes a embalar alguém que se acostumara ao massacre.
Arian desembainhou a espada, o aço brilhando com a face da lua. Pai e filha lhe seguiram até uma clareira. Dois guerreiros maltrapilhos golpeavam às cegas contra uma alcateia. Três lobos jaziam como estátuas, rastros de sangue desaguando sobre a neve à medida que seus corpos de cristais se estilhaçavam.
Um dos homens gemia com um rasgo no peito. Faruz sacou seu arco, retesando a flecha e disparando contra uma das criaturas. A seta cortou o vento para zunir sobre a carcaça vítrea da criatura, seus dentes azuis rebrilhando enquanto rosnavam.
Antes que ela pulasse na direção do pai, Arian urrou, investindo contra o salto e empalando a fera. Outros lobos surgiram, rodeando os humanos enquanto eles se agrupavam. Mas Arian aparou cada uma das investidas das criaturas que tentavam lhe morder, o encontro do aço da espada com os cristais das presas inimigas sibilando pela noite à medida que a luta continuava.
Investiu, cobriu e assistiu os aliados, protegendo suas retaguardas enquanto os monstros cortavam o ar, tentando lhes rasgar a garganta, a cada investida menos corajosos. Até os monstros sentem medo. Quando o último lobo ainda abocanhar a face de Arian — que protegia Lindris de um ataque — Faruz saltou na direção da criatura lupina, estilhaçando a flecha contra o crânio do predador; Vidro se transformou em pó. Os outros lobos encararam os aliados caídos, partindo em debandada.
— Os senhores estão bem? — perguntou Arian aos arquejos, aproximando-se.
— Estamos, agora — disse um dos homens. — Obrigado pela ajuda.
Arian fez um gesto para que Lindris se aproximasse:
— Estamos procurando um esconderijo para viajantes. Sabem se tem algum próximo daqui? Não queremos topar com piratas.
O homem ferido sorriu com dentes quase tão tortos quanto o olhar:
— É claro que não. Piratas são perigosos por aqui. Mas tem um esconderijo próximo, vamos te mostrar. Quem seria você, garotinha?
Arian e Faruz se entreolharam e, assim que o homem estendeu a mão para cumprimentar Lindris, ela recuou como se tomada por um choque. Arian girou a espada, decepando a mão do homem num só golpe.
Antes que o outro pudesse empunhar a arma, Faruz fez sua seta cortar o vento, brindando o olho do adversário com uma lágrima de aço. O moribundo restante já se arrastava para longe quando Arian o chutou:
— Vocês ficaram para trás? Quantos restam?
O moribundo escarrou um jorro de sangue:
— Vai se foder, seu filho da puta!
Arian enfiou a ponta da espada na perna do sujeito. Ele respondeu num lamento:
— Não tem mais ninguém. Eles já foram. Atrás de putas, isso sim! Ficamos para cuidar do esconderijo. Aqui, tomem, a chave! Podemos resolver isso…
A espada atravessou o esôfago do homem, que morreu enquanto o molho de chaves ainda tiritava no punho que lhe sobrou. Arian pegou as chaves e se voltou para os outros:
— Vamos.
Faruz hesitou:
— Deixaremos eles aqui? Sozinhos?
Um uivo cortou o vento. Arian sorriu:
— Não ficarão a sós por muito tempo.
O trio alcançou uma falésia suspeita próxima de um córrego congelado. Uma ripa cobria a entrada de um corredor estreito e, quando o alcançaram, viram que se tratava do esconderijo. O lugar não era luxuoso: caixas, barris e estantes se atabalhoavam enquanto ratos e morcegos navegavam nas entranhas profundas da caverna.
A proteção contra o frio era luxo o suficiente.
A manhã chegou com os viajantes atravessando o vale que levava para o reino. Lindris estava melhor, mas era uma questão de tempo para os episódios voltarem. O trio alcançou a cidade com o sol em seu zênite, mas Arian sabia que não poderia voltar para lá. Voltou-se para pai e filha:
— É aqui, vocês prosseguirão pela ala leste até chegar à cidade. Lá, procurem pela Estalagem do Andarilho Eterno, o taberneiro vai encontrar exploradores que possam te levar aonde desejam.
Faruz apertou sua mão enquanto Lindris lhe abraçava:
— Obrigado — disse Faruz. — Que você encontre seu caminho, um dia.
— Até mais, Faruz, Lindris. E saibam disso: o que você e sua filha compartilham é um dom. Não uma maldição. Não se deixe levar pelo exército, eles vão tirar tudo de você somente para descartá-lo como se nada fossem. Vocês merecem mais.
Enquanto pai e filha se afastavam, Arian encarou as montanhas. Estava na hora de continuar. Com o sol em seu encalço, o desertor partiu em direção ao horizonte montanhoso.

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