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O Caçador de Tempestades

Quando começa uma aventura? Será que é quando nós decidimos vivenciá-la, ou quando olhamos para trás e vemos que nossas conquistas são merecedoras, na verdade, de boas histórias?
Quando nos lembramos daqueles momentos de felicidade, de tristeza, amor, ódio, guerra e paz: é aí que reside a mais poderosa das magias, pois de nada adianta uma narrativa épica sem ter amigos com os quais compartilhá-la.
Esta história acontece muito tempo antes dos conflitos que viriam, muito antes de surgir o país que o mundo chamaria de Toringa. E o que era esse lugar? Katsan não se importava com isso, porque seu quintal era o céu e, seu jardim, as estrelas.
— Vamos lá, Dravir! — exclamou ele ao amigo.
E seu amigo era um dragão! As escamas carmesins refletiam o brilho do entardecer, ouro derretido a atravessar as nuvens que sopesavam a imensidão do oceano. Lá embaixo, navios mercantes e galés porfiavam as águas, trazendo um rastro de espuma atrás de si enquanto as criaturas do oceano nadavam em seu encalço, o assoalho das águas refletindo o voo daqueles que os observavam.
O farfalhar de suas asas enxotava as nuvens, enquanto Katsan levantava o rosto, abraçando o vento. Lá na frente, uma tempestade surgia. O menino abriu a mochila: sanduíches, cadernos, mapas e binóculos chacoalhavam ao vento enquanto ele mergulhava as mãos à procura da bateria.
Ajustou os nós do turbante enquanto puxava seu tesouro mais precioso. Com aquela tempestade, conseguiriam muita energia! Katsan fez seu dragão mergulhar pelo tapete de nuvens, o branco transformando-se em preto à medida que a chuva empapava suas vestes.
Os primeiros raios cortaram o ar, como se a eletricidade arranhasse o céu. De repente, Dravir mergulhou enquanto seu montador erguia as mãos, a bateria estendida como uma espada. O raio teceu seu rumo, um ramo retorcido da natureza a sair dos capões do firmamento, e o menino o segurou.
A eletricidade não era um problema para ele. Sabia controlá-la, domá-la e suprimi-la a seu bel-prazer. Sentia o sangue fervendo com a energia mais pura que o mundo poderia oferecer, as pontas dos dedos rebrilhando enquanto armazenava a energia na bateria. Quando o objeto zuniu, preenchido com uma efervescência amarela, Katsan soube que era hora de ir para casa.
Ou o mais próximo de casa que havia para ele. O horizonte já sangrava com o prenúncio da noite quando Dravir alcançou a Cidade das Nuvens. Um dirigível de proporções inimagináveis sustentado por turbinas a espantar as nuvens que encontrava, somente para ela mesma se tornar a nuvem a eclipsar a luz por onde quer que passasse.
Katsan sobrevoou as ruas da cidade, as luzes piscantes e os bondinhos lotados de trabalhadores; engenheiros, arquitetos e construtores que bombeavam vida pela metrópole. Palácios de jade, ornados com as imagens dos califados de outrora, uniam-se aos casarões dos clãs de espadachins, com suas cerejeiras a balançar ao vento.
Dravir arrefeceu no Porto Real como se asas fossem leques quase tão silenciosos quanto a brisa da noite. Um único dragão, lendário, escondido num mar de dirigíveis de cores diversas e elementos exóticos, à espera de seus montadores. Katsan foi de encontro ao tio Nomir; a barba do homem somente não era maior do que a barriga. O velho já dizia:
— O que nós falamos sobre a caça aos recursos? Nunca voe sozinho! E se os Lobos do Céu tivessem te encontrado, pestinha?
Katsan abraçou o velho:
— É bom te ver de novo, tio!
Antes que o velho pudesse continuar sua reprimenda, Katsan sacou seu tesouro:
— Olha só o que consegui! Isso vai dar pro mês todo.
— Sim, só torça para que a Saruke não te dê um mês de castigo como recompensa.
Katsan tentou se esgueirar pelo palácio até os seus aposentos, mas estava morrendo de fome. O estômago roncava e suas pernas mais pareciam cipós. Se ele conseguisse surrupiar uma bandeja com algum guisado, já seria o suficiente. A tagarelice dos amigos e a voz intimidadora de sua mestre lhe trouxe uma onda de arrepios. Katsan preferiria enfrentar uma legião de piratas do céu do que encontrar sua mentora de mau humor.
Enquanto um dos servos trazia as bandejas, Katsan fez um gesto de silêncio e procurou pelo prato. Mas precisava de frutas, também. Algumas tâmaras cairiam bem. Tentou se debruçar para pegar algumas, foi então que uma caiu, rolando em direção a sala de refeições. Katsan não precisou olhar para trás: a expressão de medo na face do servo dizia tudo. Uma voz suave na mesma medida que aterradora lhe puxou:
— Aí está você, Katsan. Não pensou que escaparia do jantar, não é mesmo?
Ele se virou. Saruke era bonita de todas os jeitos, mas especialmente quando ficava irritada. Suas madeixas negras estavam presas por uma trança, seus olhos puxados resguardando um brilho doirado. O quimono era uma confusão de vermelho e preto, a pele pálida maquiada com rasgos que se assemelhavam a relâmpagos. Katsan disse:
— É-é-é claro que não, mestre! Eu nunca perderia uma oportunidade de ficar perto de meus aliados.
Com as mãos escondidas e a cabeça enterrada no próprio peito, Katsan adentrou a sala de jantar ouvindo os risinhos dos amigos. O restante da refeição seguiu sem cerimônias. Enquanto os companheiros saíam, Katsan aproveitou a oportunidade para dizer:
— É, acho que já vou saindo, está tarde, sabe? Tô com muito…
— Você fica.
Ele suspirou. Quando estavam a sós na sala, sentiu os olhos dela cravados em si:
— Soube o que você fez.
— É claro que soube. O que você não sabe, não é mesmo?
— Olhe para mim.
Katsan a encarou, sentindo-se despido frente ao olhar dela. Saruke continuou:
— Fazer as coisas sozinho não te levará longe, não nos levará longe. Não é bom para nosso povo.
— Mas é bom para mim. Eu só me sinto bem quando estou sozinho. Toda hora eu recebo olhares, julgamentos. ‘Nossa, Katsan, você é tão especial com esse dragão!’, ‘Katsan, não fique brincando, você é o futuro de nosso povo’, ‘Katsan, já pensou com quem vai se casar?’. Eu odeio isso. Quero o bem do meu povo, mas ele não parece querer o meu!
De repente, sentiu as mãos dela sobre seu ombro. Era estranho a sensação de conforto que ela conseguia lhe trazer, dada a relação entre os dois. Saruke disse:
— Acompanhe-me.
Ela sabia que se largasse o menino a qualquer momento ele daria um jeito de escapar. Ainda assim, Saruke tinha um jeito de prendê-lo sem que ele sentisse. Na verdade, Katsan gostava da presença dela. Às vezes até demais. Sua mentora o levou para os corredores que descreviam as nações que dominavam cada elemento.
Gravuras dos primeiros líderes de seu povo a montar os protótipos da plataforma que viria a se tornar a Cidade das Nuvens. Dos dragões mitológicos, será que eles eram reais? Será que um dia foram tão grandes quanto as gravuras indicavam? De qualquer forma, as imagens remontavam aos pactos do povo do fogo. Das lutas, dos casamentos, enfim, cem anos de história desenhados em ouro e prata. Saruke o puxou para perto de si, forçando-o a olhar para o que ela encarava:
— O que vês?
— O que eu sempre vi — disse ele.
— E o que sempre viu?
— O passado. Como chegamos até aqui. Heróis e glória, só.
— Você vê alguma imagem retratando um herói solitário?
— Não… Por quê?
— Porque eles morreram antes mesmo de cogitarem a glória. E eles são muitos. A História não lembra daqueles que fizeram a glória para si mesmos. A História lembra apenas dos nomes daqueles que trouxeram o bem para o povo. A não ser…
— A não ser?
— Que você seja um vilão. A História gosta de lembrar daqueles que são odiados, pois o ódio perdura. Como você quer ser lembrado?
Katsan encarou as gravuras:
— Eu quero ser esquecido.
Mas a História não o esqueceria. A lenda de Katsan ficaria conhecida por todos os reinos, e as reminiscências de sua glória seriam gravadas em cada canto do mundo nos conflitos que viriam. Hoje, não resta quase nada do passado. Mas o pouco que resta, deixa mais perguntas do que respostas. Talvez essa seja a fonte de boas aventuras, afinal.
E Toringa está cheia delas.
Qual será a sua aventura?

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