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O Demônio Tem Medo Dele

No Velho Oeste americano, os corajosos evitavam o Deserto das Bruxas. Amavam a própria vida quase tanto quanto a fé devocional àquele que se sacrificara por seus pecados. Mas sempre havia os loucos. Por dinheiro. Por fama. Por mulheres. A estes, Deus não passava de um preâmbulo no caminho de ambições luxuriosas; e no vazio de suas almas os demônios encontravam júbilo.

Ezekiel Cross fez girar o tambor do Remington, cada projétil carregado do chumbo mais grosso; o sol poente do Texas sangrava sobre o cano do revólver. O pistoleiro encarou a pacata cidade de Lovecraft a abraçar a noite, perguntando-se quais horrores a gente que ali vivia guardava.

Demorou para chegar no oásis do caos.

O Deserto das Bruxas era implacável. Nenhum dono de terra gostava de falar sobre aquele lugar, e os que falavam davam a entender que a cidade se movia pelas dunas. Ezekiel estava quase acreditando nos boatos quando Lovecraft pareceu escapulir das entranhas da terra para brindar o horizonte.

A égua do pistoleiro era uma gota branca em meio a estradinha por onde escarros de feno corriam, como se eles mesmos estivessem assustados. Ezekiel instou a montaria ao trote:

— Vamos, Eva. Está na hora de caçar.

O povo de Lovecraft conhecia aquele que vinha outorgar a vida dos criminosos. Cross era o tipo de caçador que procurava os fora da lei que nem os xerifes mais célebres tinham coragem de lidar. O que os cidadãos de lá não sabiam é que Cross não ceifava a vida de qualquer criminoso.

O trote da ferradura sob a sombra da placa da cidade a gemer com o vento fez os moradores encará-lo. Seus olhares eram quase tão tortos quanto os próprios dentes; podres de cigarro e cerveja rala. A maior parte deles despejava as moedas da labuta em prostíbulos e salões de música desafinada. Viviam de modo que, aquele que os visse acharia que estavam prestes a morrer.

Os barões e matadores eram os favoritos do demônio. A maior parte deles se entregou ao inimigo quando estavam prestes a serem executados. Cada contratante entrava por um motivo diferente, mas o contrato era definitivo para todos.

Universal em ardilosidade, genial em confecção.

A sexta cláusula implicava que o contratante forneceria um meio de pagar sua dívida depois que fosse salvo. O demônio era um cobrador rebuscado: ordenava seu pagamento em parcelas de carne e osso.

A igrejinha da cidade estava deserta quando apeou. As moscas a voar sobre o saco dependurado no estribo zumbiam quase tanto quanto os sussurros do vento; a prova de que ele era um caçador. Mas se a prova não bastasse, tinha a insígnia: uma águia cujo bico rebrilhava em prata sobre o peito.

Tirou a arma do coldre, sabendo que o inimigo o aguardava na penumbra do templo. O sino da igreja ecoou sobre a cidade, alcançando o voo dos pássaros assustados.

A madeira da escada gemeu sob as botas do pistoleiro; as esporas tiritando em seu encalço. A figura sobre o altar encarava a estátua de Cristo. Sua pele era negra como a noite, e trajava saia com botas de cano alto, o colete ajustado até a altura dos seios. O chapéu tinha uma rosa esmaecida e seu olhar de ébano era quase jocoso quando se virou:

— Ele me disse que viria.

Ezekiel se aproximou a passos vagarosos:

— Então você sabe onde ele está.

Ela se apoiou sobre o altar:

— Todos que assinaram sabem.

Cross engatilhou o revólver. A madame riu:

— Fiz um pacto com o diabo pra fugir dos brancos só pra ser morta por um preto.

Cross tirou o chapéu, o capuz caindo para revelar as marcas de um rosto calejado pela escravidão. O verde de seus olhos a escrutinou:

— O mal não tem cor.

— Fale isso pros confederados.

— Onde está Edwards?

A madame ficou calada. Ezekiel se aproximou ainda mais. Quando estava a centímetros do rosto dela, sentiu como se o próprio gelo agarrasse sua espinha. A madame sorriu:

— Acha que eu não tenho meus truques?

Quando ele se virou, a sombra de maltrapilhos armados até os dentes projetou a silhueta de figuras com chifres sobre o assoalho. Cross sabia que aqueles à sua frente não tinham salvação, pois o primeiro passo para a luz era o arrependimento dos pecadores.

Como se arrepender de cultuar os demônios quando, para a sua fé, ou melhor dizendo, em sua heresia, eles eram deuses? Das sombras no chão, figuras rastejaram até alcançarem as janelas, observando como gárgulas o trabalho de seus súditos. Não adiantava atirar nos demônios, a melhor forma de combatê-los era esquecê-los.

Mas até para Ezekiel isso era difícil. Os demônios os perseguiam quase tanto quanto ele mesmo. No entanto, era mais fácil matar os de carne e osso do que os sem corpo.

Pulou para trás do altar com rajadas de tiros em sua retaguarda. Enquanto seu alvo escapava, Cross se baseou nas sombras projetadas na parede para atirar às cegas. O Cristo pendurado lhe observou com olhar de clemência à medida que ele fazia tombar as sombras.

Uma delas correu, pulando sobre o altar com o dedo no gatilho. Ezekiel segurou o homem possesso pelo punho e o torceu de tal modo que o sujeito chorou como uma criança. Enquanto abria a boca, Ezekiel estourou sua garganta e puxou o cadáver para si.

Levantou-se de supetão, sentindo os furos a pousar sobre a carne do jazido enquanto perfurava o crânio dos saltimbancos remanescentes. Os demônios gritavam de raiva, mas Cross os ignorou. Meu Cristo é mais mais poderoso, e o demônio tem medo dele. Correu até a saída, vendo sua fugitiva desaparecer no horizonte. Subiu em sua égua, gritando:

— IÁ, IÁ!

A lua já tecia sua prata sobre as areias quando Ezekiel alcançou o alvo. Ela o esperava com arma em punho. As estrelas, de sua arquibancada, observaram o pistoleiro a descer numa distância segura. O sangue esmaltava a pele de um, e o suor rebrilhava a pele da outra. As figuras negras se encararam. Ela disse:

— Por que você quer a vida daquele que luta contra as mesmas coisas que você?

Ezekiel disse:

— Pois ele exorciza os demônios, mas pelo motivo errado.

— E desde quando há um motivo errado para se exorcizar um demônio?

— Não há. Mas há motivos errados para fingir exorcizar em nome Dele.

Os segundos que se seguiram mais pareceram uma eternidade. Cada respiração, cada piscar de olhos, o mísero movimento era dotado da mais precavida cautela. Mas no fim da noite, o amanhã se aproximava, assim como o desfecho daquela aventura.

A madame levantou sua arma como um puma, mas Ezekiel era um leão. O chumbo cortou o vento, direto no peito da madame. Enquanto ela agonizava com o talismã entre os dedos, tentando balbuciar as palavras que invocariam seu salvador, escarros de sangue interrompiam seu discurso.

Ezekiel se aproximou, chutando o punho do revólver. A lua enquadrou a figura negra da pistoleira enquanto ela encarava o céu:

— Você é mais rápido que o meu demônio. Essa foi a sua salvação…

— A minha fé me salvou.

Cross estendeu o revólver em sua direção, o cano da arma rebrilhando com a lua.

— Onde ele está? — perguntou Ezekiel.

— Cof, cof… Novo México, Springfield…

O pistoleiro desviou seu olhar para o horizonte, como se já estivesse calculando o tempo que tomaria para chegar até lá. Ela finalmente disse:

— Vai me deixar morrer agora?

Os olhos de vaga-lume de Cross a encararam como se ele conseguisse enxergar o fundo de sua alma:

— Você morreu no dia em que se entregou ao diabo.

Ezekiel atirou.

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