Minha irmã chorava há horas. O calor não a deixava dormir; os bebês têm essa coisa de transformar os problemas deles em problemas nossos.
Meu pai tentava consertar o ar-condicionado, em vão. Desde que nos mudamos para cá, nunca tinha dado defeito, e meu pai não fazia ideia de como mexer nisso.
Só me restava olhar as estrelas. Noites quentes costumam ser claras. Minha avó sempre disse que, quando eu estivesse entediada, poderia olhar para cima; o espaço sempre seria mais entediante.
Ela tinha razão. As estrelas vivem por milhares de anos e somente nos minutos finais têm algum tipo de emoção. Espero que minha avó tenha tido alguma emoção antes de partir.
A noite passou lenta e chata, até que o ar-condicionado resolveu voltar a funcionar. Isso nos deu algum tempo de sono.
No dia seguinte, quando acordamos, notamos que a porta de casa estava aberta. No início, não demos importância. Minha mãe deduziu que meu pai tinha esquecido de trancar, mas, após isso acontecer várias vezes ao dia, resolvemos que seria melhor chamar um chaveiro.
Trocamos a fechadura e fizemos novas chaves. No dia seguinte, tivemos uma surpresa: a porta estava arrombada.
Por um momento, questionamos como não ouvimos nenhum barulho e como a porta foi arrancada sem afetar a parede. Nossa casa era meio rústica, e as paredes de madeira não eram tão firmes para aguentar a força de um arrombamento. Eu prontamente observei que, pelo jeito, a porta foi arrombada de dentro para fora, o que não fazia sentido algum.
Morrendo de medo, dormimos fora nesse dia e chamamos alguns amigos policiais para examinarem o local à noite. Eles não identificaram nada, mas, como sempre, nos alertaram sobre os cupins que havia nas paredes. A polícia se mostrou, mais uma vez, incompetente. Voltamos para casa com medo e definimos alguns turnos de vigilância para cuidar dos invasores.
Minha mãe pegava o primeiro turno e aproveitava para amamentar o bebê; logo depois era a minha vez, e, por último, meu pai. Fomos fazendo isso durante algumas semanas, e nenhum sinal de invasor apareceu. Aos poucos, o medo se tornou tédio.
Algum tempo depois, durante o meu turno, fui pegar um livro para matar o tempo. Deixei o pé de cabra na sala e fui buscar velas para iluminar o local. Após iniciar a leitura, a vela apagou. Acendi novamente, e ela apagou de novo. Repeti isso até notar que havia um vento fazendo com que a chama se apagasse.
As janelas estavam fechadas, e o ar-condicionado tinha quebrado novamente. Isso atiçou minha curiosidade; precisava entender o que estava acontecendo.
Foi quando decidi acender a luz, mesmo correndo o risco de acordar a família. Ao apertar o interruptor, a luz não ligou. Porém, comecei a sentir meu corpo estranho: um calor estranhamente confortável, como se eu estivesse envolta em um líquido quente. Contudo, rapidamente o calor foi crescendo e se tornou doloroso. Eu sentia uma pressão no meu peito, uma dor de cabeça, e meu corpo tremia. Parecia que insetos rastejavam dentro de mim. Não sei quanto tempo durou essa sensação; só me lembro de acordar no chão, no final do meu turno.
Houve coisas igualmente estranhas ao longo dos dias: sons de passos, interferências na televisão, o berço do meu irmão aparecendo todos os dias em um local diferente. Eu já tinha ouvido falar disso; chamavam de efeito Poltergeist. Mas não poderia ser real, e, se fosse, por que só acontecia comigo?
A cada dia, a casa apresentava um novo sinal de deterioração, mas meus pais não enxergavam. Acho que o apego por aquela casa encobria qualquer defeito.
Enquanto os dias passavam, eu comecei a anotar os casos no meu diário. Ele era o único lugar onde eu podia desabafar sem que ninguém me julgasse como louca. A vizinhança não estava muito aberta a loucos, desde que um fora preso por colocar fogo na própria casa, o que quase causou um incêndio nas casas ao redor.
Essa situação mudou quando aconteceu algo estranho com minha mãe. Enquanto ela estava pintando as paredes do quarto do bebê, ouviu gritos vindos das paredes. Ao tentar sair do quarto, ela também desmaiou. Pelo que contou, mesmo desmaiada, ela ainda estava consciente e ouvia vozes, que pareciam estar conversando algo.
Quando meu pai chegou em casa e a viu desmaiada, tentou acordá-la, sem sucesso. Ela só acordaria uma hora depois, assustada.
Claro que qualquer um teria saído da casa em uma situação dessas, mas o afeto e as memórias meio que nos prendiam àquela casa. Ela era parte da nossa identidade; não íamos desistir tão facilmente.
Conversamos com os vizinhos, mas nenhum deles tinha passado por algo semelhante. Na verdade, havia um vizinho: Herbie, o louco.
Fui falar com ele na cadeia, e ele me informou que este mundo tem onze dimensões e que provavelmente entramos em contato com algum ser superior. Ouvi tudo o que ele disse, mas soube que teria que filtrar; ele era conhecido pelas teorias conspiratórias. Uma vez, ele tentou convencer toda a vizinhança de que a pasta de dente é uma manobra do governo para dominação mental.
As últimas frases dele ficaram na minha cabeça.
“Se você interagiu com eles, eles devem ter percebido você. Tome cuidado, pois os deuses não gostam de ser perturbados.”
Voltei para casa, e ela parecia estar pior do que antes. O piso estava cedendo; era como se a terra quisesse nos engolir.
Aos poucos, nossa vida passou a girar em torno da casa. Todo dia limpávamos a casa, o piso era remendado, mas os pesadelos constantes nos impediam de dormir a noite inteira.
Dois meses depois, em um dos casos estranhos, meu irmão morreu. Isso acabou completamente com qualquer sinal de afeto que existia pela casa e nos levou à decisão de arrumar as coisas e sair de casa. Pena que foi tarde demais.
Enquanto nos arrumávamos, algumas partes da casa começaram a desabar. Senti como se algo estivesse tentando puxar minha mente e recobrei a consciência a tempo de me desviar de um pedaço do teto que iria cair. Meu pai estava tentando abrir a porta, mas ela estava trancada. Seria preciso arrombá-la.
As velas de casa começaram a acender sozinhas. Tentei apagá-las, mas não consegui. Meu pai retornou da cozinha com o pé de cabra, e, quando a porta caiu para fora de casa, vimos um círculo na frente da porta. Ele parecia estranhamente familiar.
Corremos para fora, mas, por um segundo, eu parei para olhar o círculo. Por algum motivo, achei aquilo encantador: milimetricamente perfeito, com símbolos talhados no piso e um círculo menor. Nessa breve hesitação, fiquei para trás.
Ao passarem pelo círculo menor, minha família foi engolida pelas chamas. As velas caíram no chão da casa, que agora não parecia mais podre. A madeira maciça e seca fez com que o fogo se alastrasse de maneira sobrenatural.
Após o fim da minha família, o círculo sumiu, o que me permitiu passar pela porta e sair de casa a tempo de escapar do incêndio que quase tomou conta da vizinhança.
*****
Envio este testemunho como parte do pedido de minha absolvição. Sei que é o quinto neste ano, mas peço misericórdia.
Se possível, desejaria ter uma janela para poder ver as estrelas.
Helena Astley
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Avaliações
3 avaliações encontradas.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
O plot tem um potencial incrível. A escrita tem pequenas falhas que se repetem, e por isso não podem ser descartadas. A escolha do conto na primeira pessoa foi quase impecável, tem apenas um pequeno porém que quero expor. Desafio plenamente cumprido.
Precisa ser corrigido em alguns pontos que vou apresentar para que tenha mais sentido. Faço apenas uma ressalva: vou ignorar que é uma carta feita por alguém, e, por esse motivo, pode ter erros naturais de alguém escrevendo um pedido de absolvição. Isto é: estou excluindo, para fins de avaliação, a desculpa do erro do personagem escritor, e não do autor do conto. Dito isto:
*Eu prontamente observei que, PELO JEITO, a porta foi arrombada de dentro para fora, o que não fazia sentido algum.*
RETIRE “pelo jeito” ou explique melhor que jeito foi esse.
*Eles não identificaram nada, mas, COMO SEMPRE, nos alertaram sobre os cupins que havia nas paredes.*
Estranho os policiais sempre alertarem sobre os cupins. Já chamaram eles outras vezes pra ir nessa casa?
*A polícia se mostrou, mais uma vez, incompetente.*
MAIS UMA VEZ: então eles, realmente, foram lá outras vezes? Por qual motivo?
INCOMPETENTE: O que poderiam fazer? Se o narrador sabe o final da história, não poderia chamar o polícial de incompetente. Talvez adicionar uma impressão conserte o trecho: A polícia não conseguiu descobrir nada. Achamos, na época, que por incompetência ou má vontade.
*Algum tempo depois, durante o meu turno, fui pegar um livro para matar o tempo. Deixei o pé de cabra na sala e fui buscar velas para iluminar o local. Após iniciar a leitura, a vela apagou. Acendi novamente, e ela apagou de novo. Repeti isso até notar que havia um vento fazendo com que a chama se apagasse.
As janelas estavam fechadas, e o ar-condicionado tinha quebrado novamente. Isso atiçou minha curiosidade; precisava entender o que estava acontecendo.*
TENSÃO CRIADA: Dessa vez a anotação é para elogiar. Ganha o leitor com essa narrativa misteriosa. Muito bom!
*Porém, comecei a sentir meu corpo ESTRANHO: um calor ESTRANHAMENTE confortável, como se eu estivesse envolta em um líquido quente.*
ESTRANHO/ESTRANHAMENTE: Use um sinônimo. Empobrece a narrativa.
*só me lembro de acordar no chão, no final do meu turno.*
NO FINAL DO MEU TURNO: tem necessidade de apontar isso? Se sim, como sabia que era o final do turno? O pai a acordou? Talvez trocar “final do” por “ainda no”
*Houve coisas igualmente estranhas ao longo dos dias: sons de passos, interferências na televisão, o berço do meu irmão aparecendo todos os dias em um local diferente. Eu já tinha ouvido falar disso; chamavam de efeito Poltergeist. Mas não poderia ser real, e, se fosse, por que só acontecia comigo?*
… POR QUE SÓ ACONTECIA COMIGO?: Essa indagação parece desconexa. O berço do irmão mudava de local. Os passos aconteciam na casa. O que é que ela está questionando, exatamente? O que é que só acontecia com ela? Os exemplos mostrar coisas que aconteciam na casa, não com ela.
*Enquanto os dias passavam, eu comecei a anotar os casos no meu diário. Ele era o único lugar onde eu podia desabafar sem que ninguém me julgasse como louca. *
DIÁRIO: Não podia ser apresentado como evidência? Ela não mencionou isso, ou mencionou isso nos outros pedidos de absolvição? Seria bom mencionar isso no texto.
*Pelo que contou, mesmo desmaiada, ela ainda estava consciente e ouvia vozes, que pareciam estar conversando algo.*
ALGO: retire. Quem conversa, conversa “algo”.
*Voltei para casa, e ela parecia estar pior do que antes.*
A partir desse ponto, o conto acelera demais. Parece que quer chegar ao fim logo. Tanto é que, depois disso, menciona a morte do bebê sem dar detalhes de como aconteceu. Esse é um evento muito sinistro, que, para um conto de terror (fantasmagórico) faz muita diferença. E, para alguém pedindo absolvição, ainda mais.
*As velas de casa começaram a acender sozinhas.*
Por que tinha velas espalhadas pela casa?
*vimos um círculo na frente da porta.*
Possível ambiguidade. O círculo estava onde? Na porta? Talvez fosse melhor explicar que estava no chão, na frente da porta.
*Ele parecia estranhamente familiar.*
Eu perdi alguma coisa?
*milimetricamente perfeito, com símbolos talhados no piso e um círculo menor. *
A descrição não ficou boa. Não sei o que é milimetrifcamente perfeito. Um círculo redondinho? E o outro menor estava onde? Dentro dele? E que tipo de símbolos eram? Achei que descobriria a razão dela ter achado familiar.
*As velas caíram no chão da casa, que agora não parecia mais podre.*
AMBIGUIDADE: O que é que não parecia podre? O chão ou a casa?
*A madeira maciça e seca fez com que o fogo se alastrasse de maneira SOBRENATURAL.*
Não seria NATURAL?
*Após o fim da minha família*
Não seria melhor dizer: “Quando minha família estava toda carbonizada, percebi que o círculo sumiu.”
*Se possível, desejaria ter uma janela para poder ver as estrelas.*
Fechamento perfeito. Na prisão, tédio total, ver as estrelas seria uma opção excelente, considerando o que foi dito no início.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
É a clássica história da casa mal-assombrada.
Há alguns momentos que poderiam ser melhor elaboradores. Dois me chamam mais atenção: a menção à avó, que depois não aparece mais e não tem tanta relevância para a história que está aqui. E, no meio, quando a protagonista vai se encontrar com o presidiário louco. A história dá um salto nesse momento e só numa segunda ou terceira leitura mais atenta, entendemos que o louco passou pela mesma situação que ela.
Isso abre um precedente muito interessante e adiciona uma camada à história. Mas a falta de uma explicação ou de um esclarecimento da protagonista que fizesse tudo isso se conectar no clímax, deixa a desejar.
Por fim, há o final, que é muito brusco e até surpreendente. A família inteira dela morre, mas não sentimos esse desastre todo. Pode ter uma explicação: ela ficou louca como o antigo vizinho? Só poderia ser melhor elaborado.
A escrita é simples, eficiente e dá pra sentir que o escritor tem um domínio bom da língua. Eu gostei bastante!
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
O conto gira em torno de coisas misteriosas, num clima de assombração que justifica o texto e muito bem o desafio, mas que por ser excessivamente misterioso e inexplicado, deixa o plot bastante genérico. Sobre o que é o conto? Sobre coisas misteriosas que acontecem numa casa. Só? Parece que sim. Eu tenho uma sugestão sobre isso: e se o poltergeist fosse a avó dando o troco de algo? Ou mesmo, apenas saindo do tédio? Isso faria uma conexão com o início do texto. E pode ser sutil, sem dizer na caruda que é a avó. Pode ser só uma ou outra indicação.
Vamos aos critérios de avaliação: a execução é boa e quase faz a gente esquecer que o plot é genérico; o estilo peca num ponto crucial (que tem a ver com a execução): como é uma carta, escrita pela própria protagonista, é realmente muito estranho a falta de ênfase no momento mais trágico do conto, que é a morte do bebê, descrita em uma linha, como se não fosse nada. O cumprimento do desafio é 10/10. A escrita peca em algumas coisas bobas. Abaixo, algumas sugestões de melhoria no texto:
Em “meio rústica, e as”, tira essa vírgula. Em “a porta foi arrombada de dentro para fora”, o “foi” deveria ser “fora” (e soaria ruim com o outro “fora” na sequência, então poderia ser “havia sido arrombada”); Tira aquele “prontamente” também; “vez, e, por último”, não tem essa primeira vírgula antes do “e”; também não tem vírgula aqui: “semanas, e nenhum”; “novamente, e ela apagou”; “fechadas, e o ar-condicionado”; “na cadeia, e ele”; “para casa, e ela”;
Aqui, não faz sentido essa conjunção adversativa: “Porém, comecei a sentir”. E ficou meio maluco dizer do nada “o piso era remendado” kk
Por fim, achei estranha também a frase “Após o fim da minha família”.