O lago era um espelho negro. Envolto por árvores retorcidas e uma névoa perene, parecia se agarrar à superfície como um véu; era o tipo de lugar que fazia qualquer visitante sentir que estava sendo observado. Pedro gostava do silêncio, ou pelo menos achava que gostava. Pretendia pescar, escapar da rotina; procurando um lugar diferente e isolado, foi parar onde estava. O ar cheirava a terra molhada e madeira apodrecida, e o frio parecia vir de dentro da água, como se algo lá embaixo sugasse o calor do mundo.
Ele ajeitou a vara de pesca e esperou, sentado na borda do barco. Estava prestes a desistir quando sentiu o puxão. Não era um peixe, tinha certeza. O movimento parou, o barco havia enroscado em alguma coisa.
Depois de muita luta, ele trouxe à tona uma vitrola antiga, coberta de limo e ferrugem. Pedro a ergueu, escoando água escura, e a acomodou no barco. Por algum motivo, a descoberta fez sua pele arrepiar.
De volta à sua casa, Pedro limpou e examinou a vitrola; um modelo muito antigo, do tipo que se encontraria em uma das lojas de antiguidades que frequentava. Gostava de mexer com coisas velhas e tinha um talento natural para consertar o que os outros achavam inútil. Sabia que poderia consertá-la.
Passou os dois dias seguintes desmontando, limpando e remontando. Quando terminou, ela estava quase funcional. Quase. Toda vez que ele tentava tocá-la, a agulha arranhava o disco. Isso o irritava, mas sua curiosidade o fazia insistir.
Certa noite, enquanto bebia cerveja e ouvia um de seus discos favoritos, percebeu algo que fez seu estômago gelar. No trecho onde a agulha arranhava, parecia haver um… um som. Ele parou o disco, ajustou a luz da luminária e escutou de novo. Não era estático, nem um simples ruído do desgaste. Era um som real.
Um grito.
Pedro insistiu.
Da segunda vez, o grito foi mais claro, agoniante, como de alguém sendo arrastado.
Ele recuou da vitrola com o coração disparado. Isso é impossível. Tinha bebido, claro; convencido de que era a bebida e o cansaço pregando peças, foi dormir.
Na manhã seguinte, ao acordar com a cabeça latejando, Pedro tentou outra vez. Mas quando tentou ouvir o disco, só houve ruído. Nenhum grito, nenhuma voz.
Uma sensação o fez voltar ao lago.
A água era mais escura do que ele se lembrava. Ele mergulhou o rosto com uma viseira improvisada, mas não suportou ficar muito tempo. Quando emergiu ofegante, sabia que precisava de ajuda.
Na estrada para o lago, encontrou uma casa velha que parecia escondida no mato alto. A casa era pequena e estava empoeirada. Ele se aproximou e bateu à porta. Nenhuma resposta. Olhando pela janela, sua atenção foi direcionada às ferramentas de mergulho penduradas na parede. Antes que ele sequer pensasse em entrar para pegá-las, um homem apareceu.
— Oi! Perdão, estou procurando…
— Quem é você?
O velho o olhava com desconfiança, enxugando as mãos em um trapo ensopado.
— Meu nome é Pedro. Me desculpe pela intromissão, mas parece que o senhor já foi mergulhador, certo?
O velho mudou de humor e soltou uma risada seca.
— Foi há muito tempo. Meus ossos já não aguentam o que aguentavam antes.
— Qual é o seu nome?
— Amâncio.
— Seu Amâncio, eu encontrei algo naquele lago. Algo que pode valer muito. Mas não consegui chegar até o fundo. Achei que o senhor talvez pudesse me ajudar.
O velho estreitou os olhos, avaliando Pedro com atenção.
— O que você encontrou?
Pedro hesitou. Não queria contar sobre a vitrola.
— Um objeto antigo. Acho que pode haver mais lá embaixo. Se encontrarmos alguma coisa valiosa, dividimos.
Amâncio coçou o queixo, pensativo.
— Esse lago já me trouxe muitos problemas, rapaz. Mas, bem, a curiosidade é uma maldição que a gente nunca supera, não é?
Pedro assentiu, sem saber o que responder.
— Certo. Eu te ajudo. Mas quero minha parte.
— Combinado.
No dia seguinte, os dois partiram para o lago. Amâncio trouxe seu velho equipamento de mergulho, verificando cada peça com cuidado.
O barco cortava a superfície do lago, cada vez mais envolto pela névoa densa. Era quase impossível distinguir onde a água terminava e o céu começava.
Amâncio estava quieto, mais quieto do que deveria. O velho não olhava para Pedro, mantendo os olhos fixos no horizonte cinzento.
Quando chegaram ao ponto em que Pedro disse ter encontrado algo, Amâncio começou a preparar o equipamento.
— Você já fez isso antes? — perguntou o velho, finalmente olhando para Pedro.
Pedro negou com a cabeça.
— Então, me siga. E não se afaste.
Eles mergulharam juntos. O frio da água era quase insuportável. Pedro sentiu o peso do equipamento puxá-lo para baixo, mas seguiu o velho, cuja lanterna cortava o breu como uma lâmina de luz.
Abaixo deles, o fundo do lago começou a se revelar. Não era só lama e pedras, como Pedro esperava. Era uma espécie de cemitério improvisado, cheio de objetos aleatórios. Ele viu espelhos de molduras enferrujadas, caixotes antigos, uma cadeira de balanço quebrada e até uma boneca sem olhos, com cabelos flutuando como algas.
Amâncio deu o sinal para que parassem diante de um grande caixote. A madeira estava escura, parcialmente deteriorada pela água, mas ainda resistente. Ele apontou para Pedro e depois para o caixote, indicando que precisavam levantá-lo juntos.
Pedro começou a ajudar, mas sentiu algo estranho na forma como o velho forçava o caixote. A madeira rangia sob a pressão, e de repente, Amâncio empurrou com força, prendendo Pedro contra o fundo.
Pedro arregalou os olhos, tentando se soltar, mas o peso era demais. Amâncio flutuava acima, imóvel, observando-o com uma expressão que misturava calma e crueldade. Pedro se debatia desesperadamente, mas a água sugava suas forças.
Foi então que ele viu a luz.
Uma figura feminina emergiu da escuridão, flutuando em sua direção. Era pálida, vestida com um longo vestido branco que ondulava como fumaça na água. Seus cabelos flutuavam em torno do rosto de traços delicados, mas seus olhos eram vazios, dois poços de um branco opaco que pareciam olhar para dentro dele.
Pedro sentiu um terror indescritível, acreditando por um momento que o espírito vinha salvá-lo. Mas quando olhou para Amâncio, viu algo que o perturbou ainda mais: o velho sorria. Não era um sorriso maligno, mas de alívio, de saudade. Seus olhos estavam vermelhos, suas lágrimas se misturavam à água do lago.
Pedro tentou gritar, mas só bolhas saíram de sua boca. Amâncio nadou em sua direção, pegando o tubo de ar dele.
Pedro lutava para manter a consciência, mas, em um último esforço, conseguiu se libertar do caixote. Ele empurrou o velho com força e agarrou o cilindro de oxigênio dele, arrancando-o de seu rosto. Amâncio se debateu, de olhos arregalados, surpresos de desespero. Enquanto isso, Pedro nadava para cima, lutando contra o peso e o frio.
Quando finalmente emergiu, Pedro respirou fundo; sentiu o ar entrando como lâminas em seus pulmões. Nadou com todas as forças que lhe restavam; o corpo estava exausto e pesado.
Ao alcançar o barco, subiu com dificuldade, tremendo de frio e medo. Olhou ao redor, mas não viu sinal de Amâncio. Nem do espírito.
De volta à margem, Pedro sentou-se no chão com o corpo trêmulo. Ele pensou em ir à polícia, mas não sabia como explicar o que havia acontecido. Quem acreditaria nele?
Em vez disso, decidiu ir até a casa de Amâncio. Queria saber se o velho tinha sobrevivido, mas também precisava de respostas.
A casa estava em silêncio, cercada por uma sensação de abandono. Pedro bateu na porta várias vezes, mas ninguém respondeu. Espiou pelas janelas e viu que o interior estava coberto de poeira e teias de aranha, como se ninguém morasse ali nos últimos anos.
Ele quebrou o vidro da porta e entrou. O cheiro de mofo e madeira velha o recebeu com um golpe. Nas paredes, viu fotos antigas de Amâncio e uma mulher bonita, com cabelos negros e um sorriso tímido.
O calafrio dizia “é ela”.
Ele vasculhou uma gaveta no quarto e encontrou um atestado de óbito em uma moldura quebrada. Ele se aproximou e leu, com as mãos ainda tremendo.
Maria Amâncio. Falecida em 1978. Causa da morte: afogamento.
Pedro recuou, o coração batia descompassado. As correspondências empilhadas na porta estavam amareladas, intocadas por anos.
Ele percebeu, com um arrepio, que aquela casa não era habitada fazia muito tempo.
Ao lado da porta de entrada, uma pilha de correspondências antigas estava amontoada, algumas cobertas de poeira, outras amareladas pelo tempo. Pedro pegou um envelope no topo, mas percebeu que o mais interessante estava no fundo da pilha: um jornal dobrado, com a manchete já desbotada, mas ainda legível: MERGULHADOR AMÂNCIO DESAPARECIDO NO LAGO. SUICÍDIO SUSPEITO.
Ele arregalou os olhos. A data era de dez anos antes. De acordo com a matéria, uma jovem declarou ter visto Amâncio entrar no lago e não sair, o equipamento de mergulho havia desaparecido junto com o corpo. O jornal citava que o velho era conhecido na região, mas havia rumores de que sofria de depressão desde a morte da esposa, Maria.
Pedro deixou o jornal cair no chão; sua mente girava em confusão. Amâncio não podia estar morto. Não pode ser isso. Ele havia falado com o velho, mergulhado com ele, lutado contra ele.
De volta à sua casa, Pedro pegou a vitrola. Parte de si queria destruí-la, mas a curiosidade o impediu. Ligou o aparelho e colocou um disco qualquer, esperando ouvir as vozes de antes. O som de ruído, como um vento, não chamou a atenção, parecia apenas o chiado característico de discos antigos. Mas, então, a agulha arranhou e algo diferente aconteceu.
— Pedro…
A voz fez seu coração parar por um instante. Ele congelou e não desgrudava do aparelho.
— Pedro… Devolva-me…
A voz de Amâncio.
Pedro sentiu as mãos suarem e o peito apertar.
— O que você fez comigo? — continuou a voz.
O tom começava a soar como desespero.
Pedro levantou-se de súbito, derrubando a cadeira em que estava. A voz continuava, se repetindo, como se estivesse presa em um ciclo.
— Pedro… o lago… venha… Devolva-me o que é meu!
Era uma convocação, uma ameaça. Amâncio queria levá-lo de volta para aquele lago, para o mesmo destino que ele já havia dado a sabe-se lá quantas outras pessoas.
Ele agarrou a vitrola, prestes a jogá-la contra a parede, mas hesitou. E se, ao destruí-la, acontecer algo pior?
A voz parou.
Por um momento, tudo ficou em silêncio. Pedro respirou fundo, seu coração batia como um tambor em seus ouvidos.
E então, num sussurro quase imperceptível: a voz de Maria:
— Eu preciso dela, Pedro.
Ele olhou para a vitrola.
O silêncio voltou. Mas Pedro sabia que não estava seguro. O lago o chamava. Amâncio o chamava. E agora, Maria também.
Não podia destruí-la. Algo dentro dele dizia que isso não seria o fim, mas o início de algo pior. Ele decidiu que só havia uma solução: devolvê-la ao lago. Talvez assim tudo voltasse ao lugar.
Na manhã seguinte, Pedro estava de volta à margem do lago. Ele remou até o centro, sentindo a mesma sensação opressora.
Sua voz soou baixa, quase um sussurro, mas parecia ser ouvida pelo próprio lago:
— Acabou.
Ele jogou a vitrola para o fundo, vendo-a desaparecer lentamente nas profundezas escuras. Por um momento, sentiu uma paz breve, como se algo tivesse sido liberado.
Era hora de sair dali.
Pedro remou de volta à margem a toda velocidade. Ainda antes de chegar, viu um grupo de jovens se preparando para pescar. Eram três, rindo e conversando enquanto arrumavam as varas e os anzóis.
Por um instante, Pedro pensou em alertá-los, dizer para irem embora e nunca mais voltarem àquele lugar. Mas algo o impediu. A voz trancou. Ele apenas acenou para os jovens com um gesto casual, como se nada estivesse errado.
Sem olhar para trás, seguiu seu caminho, carregando consigo o peso de tudo o que havia visto e ouvido.
O lago ficaria com seus segredos. E Pedro, com os dele.
Você não tem permissão para enviar avaliações.
Avaliações
2 avaliações encontradas.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Antes, minhas considerações mais diretas sobre o texto; depois, a avaliação:
FRASE ESTRANHA
– O lago era um espelho negro. Envolto por árvores retorcidas e uma névoa perene, parecia se agarrar à superfície como um véu
– chamar de “cemitério improvisado” foi uma antecipação forçada
DOIS PONTOS, depois de: “examinou a vitrola”
PONTO E VÍRGULA, depois de “e não sair”
COISAS:
– interrogação em “Quem é você”
SUGESTÕES DE ALTERAÇÃO
– “tentava tocá-la” por “usá-la”; “Isso é impossível” por “que desgraça?”; “mais quieto do que deveria” por ” – mais do que deveria”; “vestida com um longo vestido” por “com um longo vestido”;
– comentar que as ferramentas de mergulho eram uma boa coincidência
PLOT
Os eventos são suficientes pra premissa e pra desenvolver o necessário. O impacto de quase todas as partes é bem alto. O problema só, ao meu ver, é que já vi coisas parecidas muitas vezes. Então, apesar disso não ter me incomodado tanto, acho que mercadologicamente talvez possa sofrer um pouco.
EXECUÇÃO
O plot está muito bem executado, com uma ambientação boa e uma ideia bem desenvolvida, ainda que os personagens em si não estejam. A estrutura foi bem preparada e entrega tudo na hora certa. Não vi furos no roteiro. Talvez um prejuízo neste item seja a falta de uma temática mais forte além do gênero.
ESCRITA
O vocabulário é na medida. A sintaxe está certinha também. Minhas ressalvas sobre este item, que são várias, estão na primeira parte, lá em cima.
ESTILO
O narrador está ótimo (não se mete onde não deve, não viaja na maionese, não se perder etc.). Não tem figuras sintáticas ou de linguagem que chamem a atenção, mas a linguagem está bem adequada. Só achei que há um excesso de adjetivos e advérbios, que tentam deixar tudo muito forte, o que acaba por enfraquecer o todo.
DESAFIO
Cumpre perfeitamente.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Gostei muito desse conto. A ideia de trabalhar o plot em cima de mistérios escondidos na profundeza de um lago não é novidade, mas continua sendo interessante e abre portas para diversas possibilidades narrativas. A execução aqui é direta, o autor sabe o que tem que fazer e o faz com competência, ainda que eu tenha achado a narrativa muito rápida. A escrita é boa e, quando o autor descreve o grito entremeando-se ao arranhado dos discos, a sensação de fascínio misturado com medo foi perfeita, cumprindo o desafio tanto no que diz respeito ao impacto como também à atmosfera. No geral, uma leitura divertida e que pode ser facilmente alavancada em uma futura revisão ou continuação!