Na pequena cidade ao Leste de Maputo, desenrola-se uma história que desafia as fronteiras do tempo. Danvon, que acreditava ser a voz do deus Mulungu, afirmava ser capaz de suportar o fogo como prova de sua conexão divina e de seus poderes mágicos, atraindo seguidores para o culto Makonde. Contudo, muitos o ridicularizavam, chamando-o de charlatão. Orgulhoso e ferido pelas críticas, Danvon clamava para que Mulungu fulminasse os incrédulos caso suas crenças fossem verdadeiras. Ele também se dizia disposto a caminhar sobre o fogo para demonstrar o poder de sua magia.
Quando um sacerdote estrangeiro aceitou a proposta, declarou que, caso Danvon fosse queimado, isso desmascararia sua fraude e mostraria ao povo que ele não possuía poderes. Confrontado publicamente, Danvon hesitou, apresentou desculpas e desistiu do desafio, alimentando ainda mais as dúvidas sobre sua autenticidade.
Posteriormente, um de seus discípulos, mais jovem e ousado, decidiu assumir o desafio em seu lugar. Um espetáculo foi organizado, e o evento atraiu uma multidão curiosa, dividida entre a expectativa de presenciar um milagre ou a confirmação de um embuste.
A multidão reuniu-se para assistir a uma tragédia ou a um ato de magia. O representante de Danvon vestiu uma máscara sagrada Lipiko, mas, em seguida, inventou uma desculpa para evitar o fogo. Após troca de insultos entre os lados, a tão esperada ordália foi cancelada.
Danvon era um jovem de família nobre, desacreditado por seu pai e amigos. Ele aderiu ao culto Makonde para dominar magias, mas não via progresso em sua vida. Após a desistência pública de seu discípulo, um rapaz mais jovem que ele, Danvon atraiu a atenção de Naiombe, a líder bantu, por isso também chamada de “mtawala”, que requisitou sua presença.
O desafio público revelou mais do que sua relutância em provar sua fé; expôs sua insegurança profunda diante dos seguidores e a dúvida crescente em sua alma. A vergonha ecoava em sua mente até que Naiombe, ao ouvir os rumores, viu uma oportunidade. “Ele já é frágil”, pensou. “Será fácil guiá-lo ao sacrifício que trará os mihokos.”
Eles se encontraram em um casebre decorado com esculturas de pau-preto e frases na língua banta, ao fim da rua, próximo a jovens que dançavam e cantavam Marrabenta, ao lado de um mural em Pintura Tingatinga.
A bantu Naiombe era uma bruxa de presença cortante, como uma lâmina de dois gumes. Suas rugas profundas pareciam esculpidas, e seus olhos negros e penetrantes transmitiam poder. Vestia-se com Capulana, suas roupas impecavelmente ajustadas como um mecanismo sinistro. Ao seu lado, havia uma guilhotina, que ela dizia não ser apenas para decapitações, mas um portal ancestral capaz de enviar um vivo ao passado e invocar um espírito mihoko – fantasmas de fetos abortados espontaneamente, que retornavam como necrófagos.
— O ritual de invocação dos mihokos está pronto. Agora precisamos do seu sangue para retornar ao passado glorioso do nosso povo, à época em que não havia divisões entre nós.
— E se não funcionar, mtawala?
Danvon sentia o peso da decisão que fizera ao aderir ao culto Makonde. Jovem de linhagem nobre, sempre se percebera deslocado, como uma peça fora de lugar na própria família. Buscou nos rituais uma forma de preencher o vazio, mas, a cada passo, afastava-se mais de quem era, tornando-se um estranho até para si mesmo.
— Você está com medo, Danvon. Sei disso — respondeu Naiombe, com olhos que pareciam ver além da alma. — Soube da vergonha que passou na praça, diante do sacerdote. Mas ainda há um futuro para você e para os de sua classe. O portal o levará a esse futuro, trará paz ao passado e os mihokos ao presente. Não há mais justificativas. Ao ingressar no culto Makonde, você entregou sua vida a nós.
Dois seguidores se aproximaram, segurando Danvon pelos braços e o arrastando até a guilhotina.
— Mtawala… por favor… eu tenho medo! — implorou o jovem, a voz entrecortada.
Naiombe ergueu uma sobrancelha, com uma expressão que misturava desprezo e paciência.
— Medo? Todos nós temos medo, Danvon. Há seis anos, coloquei meu próprio filho sob essas lâminas. Hoje, ele retornará como um mihoko, junto com outros. E quando isso acontecer, eu serei a senhora dos mihokos.
Danvon sentiu um calafrio percorrer sua espinha. As palavras de Naiombe eram frias e implacáveis, mas havia algo mais nelas: uma determinação que não podia ser contestada.
— Não! Espere! — gritou, tentando se soltar, mas os cultistas o mantinham firme.
Agora com a cabeça presa pelos dois paus-preto que também aprisionavam seus braços, Danvon encarou a lâmina reluzente. Sob a luz trêmula das tochas, a guilhotina parecia viva, como se respirasse. O ar estava pesado, impregnado com o odor metálico de sangue e incenso queimado. Cânticos graves ecoavam pelo ambiente, enquanto os tambores aumentavam o ritmo, abafando qualquer som.
— Alegre-se, Danvon — disse Naiombe, aproximando-se dele. — Você será o primeiro degrau para um novo mundo, o início do retorno ao primitivo, ao renascimento do meu filho e da minha glória.
Com um gesto, ela deu o sinal. A lâmina caiu.
O som metálico reverberou como um trovão abafado. O sangue quente de Danvon jorrou no chão de terra batida, tingindo-o de vermelho, enquanto Naiombe observava com olhos fixos e um sorriso gélido.
— Que este sangue nos leve de volta ao que fomos.
Sem hesitar, ela se virou para os seguidores.
— Agora, derramem o óleo, acendam o fogo e comecem as recitações.
A cerimônia continuou. Dançarinos mascarados em Lipiko cobriram-se de preto, entoando cânticos em dialetos antigos. Os tambores pulsavam como corações descompassados, típicos das músicas do culto Makua, e o ar parecia vibrar. Aos poucos, uma luz negra pulsante tomou o ambiente, semelhante a um coração fantasmagórico escuro, batendo lentamente.
— Mihoko… — murmurou Naiombe, enquanto o espírito de um feto abortado apoderava-se da cabeça decapitada de Danvon.
Braços e pernas gosmentos, semiformados, emergiram do pescoço. O novo corpo grotesco se levantou, derramando sangue e um líquido fétido. Dentes afiados surgiram, e o espírito saltou sobre um dos cultistas, rasgando-lhe o pescoço.
Naiombe observou com um misto de horror e êxtase.
— Coma, meu filho. Alimente-se!
Os gritos ecoaram pela sala enquanto mais espíritos mihokos surgiam, famintos e violentos. Naiombe tentou continuar as recitações, mas foi interrompida por sete dos espíritos, que, tomados pela fome, voltaram-se contra ela.
— Não! Eu sou sua criadora! — protestou, mas os dentes afiados já estavam cravados em sua carne.
Nos últimos momentos, Naiombe sussurrou, encarando o espírito que carregava a cabeça de Danvon:
— Você lembra, não é? Do que fomos… e do que perdemos.
O espírito hesitou por um instante, mas a fome o tomou. O caos se instalou, e os gritos de Naiombe foram engolidos pela escuridão.
Naiombe subestimara a fome dos mihokos. Embora invocados por seu ritual, eles não eram servos, mas forças selvagens guiadas pelo desejo de devorar. A frágil conexão entre a líder e os espíritos se rompeu no instante em que o sacrifício terminou. Logo, os mihokos fugiram para a cidade, espalhando o caos. Invadiram ruas, atacando qualquer coisa viva. Os habitantes, apavorados, trancaram-se em casa enquanto gritos de agonia ecoavam pelas vielas. Por fim, o massacre feriu não apenas corpos, mas também almas.
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