Esculpido

Nós rangimos mais alto que a música da estalagem. Foi sorte estarmos sendo usados por um anão particularmente obeso. Aldeões assustados já queimaram móveis enfeitiçados por menos. Meus três irmãos distraídos tentaram se mover no ritmo da canção do bardo, de novo. Mas, eu permanecia parado em minha missão de reconhecimento. Juntos, nós somos as quatro pernas de uma cadeira na estalagem Fenwarden. Mas, eu não gosto de ser associado a esses três palitos de dente. Eles são um apêndice indesejado, como quadrigêmeos siameses ou câncer.

Enquanto eles falham em manter nosso disfarce, eu avanço na busca por justiça. Atento, eu ouvia o chefe da guarda xingar os planos de segurança pública na mesa esquerda anterior à nossa, a mais próxima de mim. Ele disse que a corte nega  existir um padrão nos ataques da horda de vampiros que mantêm nossa cidade refém. A palavra “vampiros” deve ter chegado aos ouvidos dos três patetas, porque finalmente paramos de rangir. Há sete anos dois sanguessugas desgraçados invadiram a estalagem e mataram Bart em nossa frente. Deus sabe o quanto eu tenho sonhado em ser esculpido em uma estaca para livrar a terra dessa escória.

Aah, o anão se levantou para ir ao banheiro. Que alívio.

Você deve ter ouvido falar do nosso feiticeiro na capital como Bartholomeu, a ruína de Orhaxes, ou Maester Bartholomeu Alfred Zigcorinthian Flamington McDiddlywizzle, o quadragésimo-sétimo. Esse era o maester de segredos por aqui. Só Deus sabe o que Bart fez para ser enviado à agitadíssima cidade de Aldorim, onde os jovens se entretêm posicionando fatias de queijo na muralha para apostar em qual dos rato subirá primeiro até o topo.

O que quer que tenha acontecido foi um acidente de sorte para o feudo. Porque Bart era o cara! Ele bebia em silêncio, encarando os quadros do caçador de baleias e do cão assassinado na frente de seu dono. No ápice de seus 163 anos, o feiticeiro competiu com Elodin para ver quem conseguiria arrotar as letras do alfabeto mais rápido. Bart vomitou em jato antes da letra N, e fez a poça de vômito se atirar pela janela, o que acabou atingindo uma elfa no rosto e eventualmente culminou no rompimento de laços comerciais entre Aldorim e as cidades livres da floresta de Thalavendris.

Nós nunca soubemos o que fez de nós pernas de cadeira conscientes. Bom, não até o dia em que ouvimos a canção sobre um feiticeiro irlandês exilado em Aldorim que tomou muito whisky de Ihrem e acabou sofrendo um acidente intestinal em seu kilt sem cueca. A introdução da balada falava sobre efeitos estranhos dos elixires de longevidade no meio ambiente. Mas, todos só se lembraram do refrão, sobre como a estalagem precisou ser interditada e limpa com uma pá.

Qualquer que tenha sido o método, eu sou grato a Bart e lembro diariamente daquele velho reclamão. Ele trouxe vida a Aldorim inteira—e não me refiro apenas à misteriosa alquimia em suas fezes ou aos caroços de milho falantes que começaram a aparecer pelo feudo desde sua chegada.

Bart era um herói. Quando a estalagem foi atacada por vampiros, ele sussurrou um nome de poder que ejetou todos os cidadãos pelas portas e janelas com segurança. Em seguida, um novo feitiço ainda selou as passagens da estalagem para manter  os dois vampiros confinados até o amanhecer. Ainda que ele soubesse que não conseguiria abandonar a estalagem a tempo.

Eu e meus irmãos tivemos que esperar ao lado da cabeça de Bart até a patrulha coletar seus restos do chão—das paredes, das mesas e talvez do teto? Vampiros não deixam suas vítimas particularmente identificáveis. E agora esses três gravetos sambam como se Bart nunca tivesse existido; como se Aldorim estivesse em segurança. Minha repulsa só piorou ao ouvir o resto da conversa na mesa de trás.

“E a mais nova dos Wilker, há cinco semanas.” disse o chefe da guarda.

Essa não era a primeira menção dos Wilker em Fenwarden. Dizem que o primogênito da família procurou sua irmã mais nova por dois dias antes de desaparecer também. Ainda assim, a coroa não acredita que os desaparecimentos em série sejam evidência suficiente para enviar suporte a Aldorim.

Aristocratas… talvez se os excrementos do maester de segredos fossem introduzidos entre as orelhas do rei ele finalmente parasse de relativizar o preço da vida humana.

Sem forças para ouvir tantos absurdos parado, eu teci um plano. Assim que o anão retornou da latrina, eu me atirei para o mesmo lado em que meus irmãos desavisados dançavam. Nossa cadeira caiu, o anão se desequilibrou e todo o peso de seu corpo impactou a quina entre o assento e o encosto de nossa cadeira. 

Eu rolei primeiro para baixo da mesa, depois para a parede e, após me certificar de que todos ainda tentavam ajudar o anão—ou fechar os olhos antes que os seis dedos de cofrinho peludo os traumatizassem eternamente; eu me coloquei em pé e saltitei até o alforje de couro do cunhado do arsenalista. 

O cunhado do arsenalista ainda parou no bordel antes de retornar a sua casa. Não gosto de pensar no destino que uma perna de cadeira cilíndrica teria nesse tipo de estabelecimento—eu detesto umidade e calor. Eventualmente, consegui ser levado até a casa da família e encontrei a caixa de materiais do forjador.

Mas, eu me arrependi de ter abandonado meus irmãos desde o momento em que fui retirado de Fenwarden. Uma vez na casa do arsenalista, eu me atirei na pilha de madeira e esperei pelo dia em que ele me transformaria em estaca. Os dias viraram meses. E os meses viraram anos. Eu poderia ter procurado meus irmãos, mas tive medo do que eu descobriria.

Eu acordava à noite gritando o nome de meus irmãos e antes de adormecer relembrava a animação com a qual eles respondiam às baladas do bardo. Eu esqueci até mesmo do som das baladas, de suas letras, a única memória preservada em mim era da dança empolgada de meus irmãos. Onde os restos de nossa cadeira teriam sido despejados? Tudo que eu tinha à minha volta eram corpos sem vida, talvez corpos de meus próprios irmãos. De que adianta virar uma estaca agora? Que diferença a morte de um vampiro faria para Bart e todos os outros membros da minha família?

Será que alguém sobreviveu?

O que o sobrevivente deve pensar de mim?

Uma noite, enquanto o feudo dormia, o filho mais novo do arsenalista veio até a pilha de madeira e estudou minha espessura. Ele me levou até seu quarto, tirou sua roupa, começou a esculpir dois círculos grossos e peludos em minha base, no topo, ele esculpiu uma cabeça grossa e um olho.

É claro que fiquei horrorizado, mas tive medo de que tremer só aceleraria o processo. Quando o garoto delicado passou um líquido gosmento em mim, eu terminei uma última oração. Falei a Deus que eu entendia a extensão de meus pecados, disse que mesmo nas entranhas do inferno eu ainda O amaria. Se esse é o preço pelo que fiz com meus irmãos eu colheria as consequências de meus atos de cabeça erguida, ainda que levemente inclinada para a esquerda. Mas, o garoto se deitou na cama e enquanto o líquido secava em minha superfície ele adormeceu.

Na manhã seguinte eu fui acordado por uma voz afetuosa. “Awn, Leo, que coisa mais linda, ela vai amar! Foi você quem esculpiu? Olha para essas patinhas peludas, que fofura. E ele está piscando!”

Uma garota de dois anos me encarava fixamente, seus dois olhos verdes hipnotizados. “Uisso, hee hee, uisso, mamãe.”

“Isso, filha, urso. Foi o titio Leo que esculpiu. O que mais ele já fez pra você aí?”

“Pata, poquinho e oveia.”

Eu não acreditei em meus olhos, mas em cima de um tapete felpudo estavam meus irmãos, os três–vivos e em segurança. Nós rolamos para fora do alcance da garotinha de olhos verdes e nos tocamos. Uisso, pata, poquinho e oveia; nosso novos nomes são tão legais. Houve um estalido quando nossos corpos vibrantes se reencontraram. Não havia uma sombra sequer de ressentimento no olhar que recebi de minha família. Todos pareciam tão felizes em me ver!

A sombra de outra pessoa me fez rolar novamente para poder olhar para cima. E, por quase um segundo, eu tive a nítida impressão de que o espírito de um velho de chapéu pontudo sorria em minha direção.