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O Passageiro

I am the passenger and I ride and I ride
I ride through the city’s backsides…

Depois de 40 anos de serviço, finalmente chegou a hora de me aposentar. Foram 40 anos dirigindo de um canto para o outro nessa cidade, sempre com o mesmo destino: o cemitério mais próximo.

Pode parecer estranho, tenebroso, mas alguém precisa fazer essa função e, nos últimos 40 anos, essa foi a minha: dirigir o carro funerário. No começo, é um pouco estranho; lidar com a morte nunca é fácil. Há muito sentimento envolvido, mas depois de um tempo você se acostuma e vira apenas mais um pedaço inerte de carne sendo levado para descarte.

Apesar de todos ficarem surpresos com o meu trabalho quando conto, ele não é muito diferente de tantos outros que vemos por aí. Um tanto quanto entediante; a rotina não muda muito ao longo do tempo.

Às 22h, chego à funerária e fico aguardando um chamado. Quando recebo o aviso do seu Marcelo, neto do seu Joaquim, fundador da casa funerária e grande amigo meu, vou para a Saveiro ano 2004 adaptada, ligo o rádio e vou para o hospital buscar o passageiro do dia.

A música de hoje é The Passenger, Iggy Pop. A primeira parada, Hospital da Beneficência Portuguesa, no Paraíso. Nem preciso pensar: depois de tantos anos, minhas mãos e meus pés já se mexem automaticamente, o carro vai praticamente sozinho. Primeira à esquerda, segunda à direita, reto até o final da rua, esquerda, direita.

Singing la la la la la la la la
La la la la la la la la
La la la la la la la la la la
Get into the car, we’ll be the passenger
We’ll ride through the city tonight…

Quando conto que sou motorista de carro funerário, me perguntam se já vi algo de sobrenatural, barulhos estranhos, se não tenho medo. Na grande maior parte do tempo, nada de especial ou diferente acontece, mas não vou negar que em três momentos ao longo de todos estes anos passei por coisas que não posso explicar.

A primeira delas aconteceu logo que comecei nessa profissão. Tinha 21 anos, recém casado e tinha acabado de perder o emprego na fábrica de celulose. O seu Joaquim, amigo meu de infância, estava precisando de um motorista para a funerária da família dele e, sabendo que eu estava desempregado, me chamou para trabalhar. Na necessidade como eu estava, não pensei duas vezes.

Logo na minha primeira semana, ainda estava me adaptando aos comandos da Chevrolet Caravan modelo 75, quando me aconteceu algo que até hoje não consigo explicar.

Tinha acabado de buscar o corpo de uma jovem moça no antigo Hospital e Maternidade Cristo Rei, hoje abandonado, quando distraído observando o céu estrelado, esperando o sinal abrir, percebi que tinha alguém sentado no banco do passageiro. Quase morri de susto.

— Ah! Quem é você?
— Cristina. E você? — ela disse me olhando com cara de curiosidade.
— Como entrou aqui?

Ela respondeu rindo da minha cara de susto.

— Calma, não sou nenhuma fantasma. Estava cansada de ficar esperando meus pais naquele hospital, não queriam deixar eu sair. Quando você estacionou lá, entrei escondida sem ninguém me ver

Depois disso, ela olhou para baixo, na direção do porta luvas, com um sorriso maroto. Aparentava ter uns 25 ou 26 anos, mas agia como se fosse uma criança. Parecia muito abatida e cansada, os cabelos lisos e negros cobrindo o rosto.

— Você está bem? Não deveria ter ficado no hospital?

— Ah, não, não aguentava mais. Depois que perdi meu bebê, não tinha mais porque ficar lá. Quem está ali atrás? — apontando com o polegar para o caixão.

— Não sei o nome dela. Para falar a verdade, não memorizo o nome de todos. Para onde você está indo?

— Nem sei, só pensei em escapar de lá. E você?

— Deixar o corpo no cemitério.

— É, faz sentido.

Ela olhou para trás novamente, praticamente passando para a parte de trás da Caravan.

— Do que será que ela morreu?

— Não sei, não cheguei a olhar a papelada — eu disse apontando para o porta luvas.

— Onde você mora?

Assim que perguntei, ela parou pensativa e ficou me olhando. Depois de alguns segundos, como se estivesse fazendo força para se lembrar, voltou a falar:

— Está tudo meio bagunçado na minha cabeça, não me lembro de quase nada, só do hospital e do meu filho.

Ficamos alguns minutos em silêncio e continuei dirigindo em direção ao cemitério. Quando já estávamos quase chegando, Cristina abriu o porta luvas e começou a folhear a papelada da falecida.

— Cuidado com esses papéis, vou precisar deles.

— Sem problema — e continuou folheando.

Conforme ia lendo, ia ficando pálida, os olhos iam se arregalando de pouquinho em pouquinho, até ficar com uma expressão de completo terror no rosto. Tive que tomar muito cuidado para não bater o carro, mas, por sorte, naquele momento chegamos ao nosso destino.

— Chegamos. Você está bem?

— Acho que entendi o que aconteceu. Agora eu sei onde moro.

A fala não era mais assustada, mas resignada, de alguma forma também aliviada. Ela guardou a papelada de volta no porta luvas e saiu do carro.

— Ei! Onde você mora?

— Ali — disse, apontando para o cemitério.

Ela olhou para mim, deu um sorriso e foi caminhando em direção às paredes do cemitério.

Posso ter confundido, era uma noite bem escura e havia um pouco de névoa. Mas a impressão e a imagem que está na minha cabeça até hoje é dela indo em direção ao seu destino, ficando cada vez mais transparente, se misturando à neblina, até sumir completamente antes de chegar no muro.

Oh the passenger
Oh how he rides
Oh the passenger
He rides and he rides

Poucos dias depois, encontrei no porta luvas um atestado de óbito bem amassado, amarelado e com pequenos rasgos. Era de uma moça chamada Cristina que havia falecido um ano antes ao dar à luz, a mesma causa da moça que eu estava transportando naquele dia. Minha teoria é que ela ficou presa deste lado, porque não entendia ou não aceitava o que tinha acontecido, mas, de verdade, não tenho como saber o que realmente aconteceu, nem mesmo se tudo isso não foi criação da minha imaginação.

Uma coisa que acabei me acostumando depois de todos esses anos foi de passar as noites pensando na vida. Apesar de não fazer questão de saber as histórias dos meus passageiros, vez ou outra acabo ouvindo. Querendo ou não, conviver com a morte nos faz refletir.

E, apesar de conviver com a morte todos os dias, nunca estive tão perto dela quanto no dia em que sofri um acidente.

Foi há mais ou menos uns 10 anos. Tinha acabado de deixar um corpo quando passei num cruzamento, sinal verde para mim, um caminhão cegonha furou o farol vermelho e atingiu o lado do passageiro em cheio.

Se tivesse alguém no banco do passageiro, teria morrido na hora. Do momento do acidente, só me lembro de ouvir uma buzina, um farol alto e o impacto da batida. Apesar de estar com o cinto, bati a cabeça com força contra a janela, que se espatifou na hora. Não cheguei a desmaiar, mas, completamente zonzo e desnorteado, talvez alguma lesão temporária decorrente do trauma, não conseguia me mexer.

Fiquei ali não sei dizer quanto tempo, 30, 40 minutos, parado, olhando para as luzes da rua, minha visão ainda turva e um zumbido no meu ouvido que aos poucos foi diminuindo, dando espaço para o som do carro. Ainda me lembro da música, La la la…

Curioso. É a mesma música que vim ouvindo hoje.

Oh the passenger
He rides and he rides
He sees things from under glass
He looks through his window side

Foram três dias inconsciente e mais dois meses internado no hospital. Um traumatismo craniano leve, três costelas quebradas e um braço quebrado. Ainda sinto algumas dores decorrentes do acidente, principalmente nas minhas costas. Junte ao acidente minha idade já avançada, é dor para todo lado.

Tem dia que a gente acorda melhor, tem dia que dói tudo. Por sorte, hoje é um dos dias bons.

…the things he knows are his
He sees the bright and hollow sky
He sees the city sleep at night
He sees the stars are out tonight

Cheguei ao meu destino. Estacionei o carro funerário na vaga reservada e já fui pegar a papelada no porta luvas. Quem era hoje mesmo? Estou tão no automático que nem reparei quando retirei o corpo.

Revirei o porta luvas, mas não encontrei nenhuma documentação, a pastinha que guardo eles está vazia. Será que esqueci de retirar o corpo? Isso nunca me aconteceu antes! Mas olhei para trás, pela divisória da cabine e o compartimento traseiro, e vi um caixão.

Bom, se tem um caixão ali é porque não esqueci. Devo ter esquecido de pegar a papelada. Isso vai me dar um pouco de dor de cabeça.

Passei para a parte de trás para dar uma olhada no morto: um caixão de carvalho claro, aparentemente de boa qualidade, bem acabado e desenhado, daqueles com uma abertura com vidro para se ver o rosto do falecido. Não é um caixão de excelentíssima qualidade como da vez que transportei um político amigo do seu Joaquim, mas também não era feio como alguns que vi ao longo desses anos.

So let’s ride and ride, and ride, and ride
Singing la la la la la la la la
La la la…

Esgueirei-me por cima do caixão e olhei pela abertura de vidro. Estranhamente, o caixão estava vazio. Entretanto, vi, mesmo com a pouca luz do local, o reflexo do meu rosto no vidro.

Nossa, como estou envelhecido. Tantas rugas, olhos cansados, abatidos. Uma vida trabalhando nessa função!

Será que vou me adaptar a essa nova vida? Foram tantos anos de um lado para outro num carro funerário, nem me lembro como é não ir trabalhar.

Ali parado, a minha vida passou pela minha mente como um filme. Minha infância no interior, brincando na rua com meus primos; a primeira vez que vi minha esposa, na época ainda futura esposa; a primeira vez que dirigi a Caravan adaptada, logo depois de seu Joaquim me dar uma oportunidade; o dia do meu casamento; o nascimento do meu primeiro e único filho; a formatura do meu filho na faculdade; o meu acidente de carro…

E então as coisas começaram a fazer sentido. Aquele não foi o único acidente que sofri. Fechei meus olhos.

Singing la la la la la la la la
La la la la la la la la
La la la la.

A música parou de repente. Abri meus olhos e estava sentado no banco da frente, no banco do passageiro.

Havia me esquecido. Não sei há quanto tempo foi, mas me lembrei. Eram 4h da manhã. Sei disso porque estava olhando para o rádio quando aconteceu. Estava trocando a rádio quando me distraí e passei num sinal vermelho. A última coisa que me lembro é dos faróis de uma picape vindo na minha direção e acertando em cheio na porta do meu lado. Depois disso, não me lembro de mais nada.

Respiro fundo e olho para frente, em direção aos túmulos no cemitério. Agora entendo o que estou fazendo aqui e qual é o meu destino.

Abro a porta do passageiro — será que já saí deste carro por esta porta alguma vez? Não me lembro —, saio com cuidado, fecho a porta e dou uma última olhada na Saveiro adaptada. Com algum pesar, mas aceitando o meu destino. Caminho lentamente, sem pressa e sem olhar para trás, para o meu novo lar.

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2 avaliações encontradas.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Achei mais próximo de uma crônica (ainda que fantasmagórica) do que de um conto. Apesar desse detalhe, está bem escrito e o desafio foi cumprido.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

PLOT: Um tanto clichê, mas funciona bem.
EXECUÇÃO: Personagens bem construídos; boa estrutura na trama; ambientação excelente.
ESCRITA: Corrigi pouca coisa; faz boas escolhas vocabulares.
ESTILO: O narrador tem personalidade; o texto não é muito literário, mas brinca com a inserção da música de um jeito interessante, que ajuda bastante no tom também.
DESAFIO: Cumpre perfeitamente o desafio.