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O Relicário

Enrolado em um cobertor surrado, ele observava o movimento da cidade da parte que lhe cabia da calçada. Seus olhos buscavam algum vestígio de um passado do qual não conseguia se lembrar. Seu maior tesouro era a perna traseira esquerda de uma cadeira: um pedaço de madeira gasto, com remanescentes de um estofado vermelho, já desbotado. Quando enrolado com o restante dos seus trapos, parecia a bandeira de uma derrota permanente.

Não se lembrava de como tinha acabado ali. Talvez sequer tivesse existido antes dali. Mas lembrava-se da cadeira. Sim, a cadeira. Um dia, ela havia sido inteira. Um móvel bonito de madeira maciça. Enquanto os outros sentavam no chão, ele se sentava nela enquanto contava suas histórias. Ele nunca teve um nome, mas ali era reconhecido por todos. Agora, só restava essa perna, um lembrete de tempos melhores, de um tempo em que ele era alguém.

Primeiro, foi obrigado a se desfazer de duas pernas para se aquecer em uma noite fria. Ainda conseguia se sentar e se equilibrava com dificuldade, mas já não era mais o centro das atenções e suas histórias já não eram mais tão interessantes. Algum tempo depois, a cadeira se despedaçou em uma briga, quando lhe tentaram tomar o cobertor. Se pudesse voltar atrás, teria deixado. Sem o cobertor, provavelmente morreria, mas depois de perder a cadeira, ele nunca mais viveu.

Tentou preencher o vazio de outra forma. Chegou a ter um cachorro por um tempo, mas, como mal tinha condições de sustentar a si mesmo, logo teve que entregar o vira-lata aos cuidados de outra pessoa. Pouco tempo depois, encontrou uma pequena fortuna em um envelope que alguém havia jogado fora. Isso poderia ter representado um recomeço se não tivesse gasto tudo em bebida.

A única coisa que sobrou foi a perna da cadeira. Nela, ele podia confiar, ela nunca o deixaria. Já não comia, nem bebia. Passava o tempo que podia olhando para ela. Também evitava dormir, embora pudesse vê-la em seus sonhos, e assim o fazia. De fato, já não podia diferenciar sonho de realidade. Estava sempre apreensivo, como se a qualquer momento aquele toco de madeira pudesse voltar à sua antiga forma, restaurando junto o prestígio que outrora ele tinha.

Com o tempo, os momentos de glória se tornaram uma memória distante. Começou a esquecer dos rostos que o cercavam avidamente para ouvir suas histórias e, logo depois, começou a esquecer as próprias histórias. Tudo isso sumiu na espessa névoa de um olvido que o surpreendia – como esqueço rápido as coisas, meu Deus – mas que não recusava; ao contrário, recebia-o como uma bênção – como uma absolvição.

Por fim, esqueceu a origem do seu bem mais precioso. Em um primeiro momento, lembrava-se apenas que se tratava de um pedaço de um móvel. Era um móvel comum, como uma cama ou uma mesa. Com o passar do tempo, já não sabia dizer se aquilo era um pedaço de lenha ou de alguma construção. Mas isso não diminuía o seu fascínio, pelo contrário: quanto mais ele se esquecia, mais encantado ele ficava. Se antes era grato pelos momentos que aquele item lhe proporcionara, agora agradecia pelo simples fato daquele pedaço de madeira existir.

Todas as noites, ele dormia agarrado com aquele objeto, como se fosse um talismã. Certa vez, acordou de súbito. Era uma briga de bêbados e alguém tinha lhe tomado a perna da cadeira para usar como arma contra outra pessoa. Se jogou no meio da refrega desesperado. Enquanto era golpeado pelo seu próprio amuleto, tentava se posicionar de um jeito que não o danificasse.

A polícia chegou, cessando as agressões, mas já era tarde. Ele e a perna da cadeira estavam em perfeita simbiose, praticamente partidos ao meio, jazidos no chão. A madeira, outrora lisa e acolhedora, agora se apresentava lascada e rachada. Não suportava aquela visão. O seu relicário havia sido profanado. Fechou os olhos. Pensou que o veria novamente em seus sonhos. Mas não sonhava mais. Havia esquecido disso também.

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Avaliações

2 avaliações encontradas.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Muito bom o plot em si, bem como os demais itens de avaliação. Mas me parece mais próximo de uma descrição de um conto, do que um conto em si mesmo. Por isso coloquei uma nota um pouco menor no estilo. Entretanto, de uma maneira geral, está muito bem escrito e com alta qualidade.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Vou anotar enquanto escrevo.

Alterações sujeitas a contestação.

Alterei: “vestígio de um passado do qual não conseguia se lembrar”; “Não se lembrava de”; “lembrava-se”; “ele se sentava”; “restava essa perna”; “lembrava-se apenas”; “pelo contrário: quanto”; “aquele item lhe proporcionara”; “Todas as noites”.

Dois pontos depois de: “esquerda de uma cadeira”.

Vírgula depois de: “Primeiro”; “Algum tempo depois”; “Sem o cobertor”; “perder a cadeira”; “Pouco tempo depois”; “Nela”; “Já não comia”; “Em um primeiro momento”.

Crase em: “voltar à sua”.

BORA LÁ

ESCRITA: Muita vírgula faltando e algumas alterações sintáticas. Escrita muito fluida, clara e direta. Linguagem muito apropriada.

EXECUÇÃO: Cada pedaço constróis personagen e avança a trama. Personagem, ambientação e tema muito bem construídos. Simbologia forte.

PLOT: Incrível.

ESTILO: O texto é bastante poético. Narrado bem escolhido.