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Guinchados na escuridão

Seggi desde sempre sempre foi sorridente. Antes que dele sua mãe engravidasse, já diziam, cá e lá, que se um dia ela, adúltera, boêmia, prostituta, deserdada do marido, da família e convento, viesse a procriar, daria à luz uma aberração ; e quando ela engravidou, não tardaram a premonizar os monstruosos detalhes da criatura-ainda-uterina. 

A mãe morreu na cama do parto por complicações, mas disseram que foi de vergonha ou punição divina ; e Seggi seguiu sobrevivendo ninguém soube ao certo como.  Diziam que roubava das cestas das feiras, quando na verdade só assaltava as sacolas das lixeiras. Aos seis, suas mãos eram mais rápidas que as patas e seus dentes mais espessos que os dos ratos ; e gostava do estalar da espinha dorsal dos roedores sob o esmagar de sua mandíbula. Guinchados na escuridão lhe davam água na boca. 

Era uma criança alegre, brincalhona, sempre sorridente : um sorriso sangrento e escorrente, uma boca cheia de dentes. Com as pedras, gravetos e demais dejetos que arremessavam, mais por costume e etiqueta do que por nojo e aversão, contra o seu barraco às vezes sob a escadaria, às vezes sob a ponte, fabricava todo tipo de armadilha. Era mais fácil caçar ratos com a ajuda de dezenas de ratoeiras, espalhadas em tudo que era canto, mais sorrateiras que os ratos, mais perigosas que a peste. 

Em pouco tempo, começara a presentear-se a si mesmo com verdadeiros banquetes : rato cozido na água suja, rato à parmegiana podre, rato ao alho-e-óleo usados, rato frito na banha de cadáver, rato ao molho de chorume, rato defumado na fumaça de chumbo, rato ao creme-brulé fora da validade, rato ensopado no caldo de feijão estragado, rato marinado na boca-de-lobo, rato desfiado ao garfo enferrujado, rato moído à moederia empoeirada, rato empanado na farinha de carvão e no ovo à salmonela e, é claro, seu clássico, seu favorito : rato cru, ainda vivo, contorcendo as patas e guinchando a dor sob a alegria daquela bocarra : uma boca sangrenta e ascendente, um sorriso cheio de dentes. 

Mas veio então a crise internacional, e já se falava em inimigos da pátria ; e com o falar dos inimigos da pátria, veio o temor da guerra ; e com o temor da guerra, subiram-se os preços, foi-se a comida ; e com a comida, foram-se os ratos. 

Disso, surgiu em Seggi seu primeiro semblante de desânimo. Passou fome, por algum tempo. Mas só por algum tempo. Ouviu, um dia – em que seu barraco estava sob a ponte e ele, faminto, plantava armadilhas nas lixeiras e nas demais proximidades e pontos cegos da escadaria –, que uma garotinha, filha de algum casal local, havia desaparecido ; e que haveria recompensa para quem a encontrasse. 

Disparou, a quatro patas, para o barraco. Encontraria a menina e exigiria das autoridades competentes sua recompensa num suprimento vitalício, diário e gratuito de roedores. Mas logo se desconcentrou, quando de repente ouviu, de dentro de sua barraca, escapar um guinchado choroso ; e a fome foi tanta que saltou barraca-a-dentro, a bocarra boquiaberta, as mãos mais rápidas que as patas, os dentes mais espessos que o couro cinzento. 

Quase não conseguiu dormir à noite : a barriga cheia parecia prestes a rasgar e romper as tripas para fora ; e não conseguia se conformar com a nova descoberta : que o gosto da medula da menina tinha mais sabor que a do rato. Antes do inverno, multiplicaram-se as equipes de busca e reduziram-se as crianças. 

A cidadezinha, que já não falava mais de Seggi como “aquela criatura imunda”, mas como “aquele selvagem, aquele diabo, aquela peste do abismo e das trevas”, e que já não aguentava mais a altura dos preços e companhia da fome, rendeu-se ao medo e às superstições : a cidade era o inferno ; Seggi, seu diabo ; e acabaram todos por evacuar, uma família atrás da outra, daquele interior onde não chegava o estado, abandonado por deus, para as metrópoles litorâneas mais próximas. 

Pouco depois, chegaram de mãos dadas, recém casados, a guerra e o inverno. Os civis, de todos os cantos do país, tiveram de buscar refúgio nas diversas regiões rurais da nação. Os vários estrangeiros-compatriotas que tiveram de partir, por ocasião do destino, para a cidade de Seggi, esperavam encontrar, naquela cidadezinha, o típico campesinato caipira e incivilizado, preconceituoso e fofoqueiro, predatório nos insultos, pródigo nas premonições ; e também haviam ouvido dizer que era uma cidade infestada de ratos. 

Invés disso, foram recebidos pelos silêncios dos passos corridos e sussurrantes nas vielas, pelos vultos risonhos e invisíveis sob as sombras das escadarias e das pontes ; e não havia sinal de roedor. Sequer havia baratas, ou grilos, ou formigas. 

Não se escutava o canto-final das cigarras. Nem sinal de pragas pequenas, nem sinal de ratos. Mas escutava-se guinchados : guinchados nas janelas nos telhados nas soleiras nas lixeiras nos bueiros nos esgotos nos arbustos nas calçadas nas ruas nos becos… guinchados, guinchados e mais guinchados, tocaios na escuridão ; e também encontrava-se armadilhas, aqui e lá, semelhantes a ratoeiras, porém grandes demais para apanhar ratos. 

Seriam capazes de apanhar raposas e cães pequenos. Mas nas garras ensanguentadas delas encontrava-se sempre sapatos pequenos, laços coloridos, brinquedos infantis. 

Com o tempo, passaram a compartilhar das superstições e preocupações dos antigos moradores, estabelecendo toques de recolher rigorosos para os pequenos ainda pequenos e equipes de busca para os pequenos ainda desaparecidos ; e apesar do que passaram a dizer da cidade, não era assombrada : era uma cidade alegre, brincalhona, sempre sorridente : uma cidade cheia de ratos, uma cidade cheia de dentes.

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Avaliações

3 avaliações encontradas.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Um plot bastante interessante, mas poderia ser menos explícito e mais implícito, isso daria um ar mais próximo de fantasmagórico. Muito bem escrito e segue um bom ritmo.

Porém o desafio propriamente dito ficou prejudicado, é um conto de terror, mas não possui exatamente um elemento fantasmagórico, ou talvez seu elemento fantasmagórico seja bastante frágil para poder ser considerado. Pensando nessa segunda hipótese, coloco uma nota baixa no desafio, porém existente. Tentando considerar que cumpriu o desafio apenas “levemente”.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Plot: excelente.
Execução: protagonista bem construído, ambientação muito boa.
Escrita: algumas pontuações mal feitas, que não podem ser postas na conta do estilo.
Estilo: bom narrador, figuras sintáticas e de linguagem legais.
Desafio: cumpre bem mal.

Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Esse é o melhor conto que eu li do Universo Anthares, até o dia em que faço a avaliação (13/02/2025).
É a construção de uma lenda, a apresentação de um personagem, de um folclore, da gênese de uma tradição.
Há elementos sutis que brincam, sem perder o clima sombrio a se propõe.
Se há algo a ser, quiçá, corrigido, é uma possível ambiguidade no penúltimo parágrafo. Vejamos, primeiro, como termina o antepenúltimo parágrafo:

*e também encontrava-se armadilhas, aqui e lá, semelhantes a ratoeiras, porém grandes demais para apanhar ratos.*

Agora, o penúltimo parágrafo:

*Seriam capazes de apanhar raposas e cães pequenos. Mas nas garras ensanguentadas delas encontrava-se sempre sapatos pequenos, laços coloridos, brinquedos infantis. *

Questiono: As garras ensanguentadas são de quem?Das raposas e cães pequenos, ou das armadilhas?

Quanto ao resto, preciso ser honesto quanto aos elogios e a habilidade do autor de envolver o leitor. É um texto BOM DEMAIS!

Tenho que dar o braço a torcer para a percepção de colegas que avaliaram (em live) quanto à não perfeição do Desafio. O aspecto fantasmagórico está em um segundo plano, em foco em parte, mas construído. Por isso, não seria justo penalizar demais, nem muito menos dar plenitude à proposta. (O que é uma pena, pois é um conto que deveria ter nota máxima).

Que venham mais contos desse nível. Do autor e dos demais.