Quando criança – Coff! Coff! –, minhas amizades eram espalhadas, como uma tropa desenfreada; organizá-las e mencioná-las era um desafio e tanto, mormente quando minha querida mãe me perguntava a respeito delas. Lembro que a resposta era (sempre) precedida de uma aritmética básica e checklist dos nomes – Coff! Caff!.
O convívio extraclasse era intermediado pelas dimensões geográficas: aos amigos vicinais, a amizade era uma constância e cultivo; aos amigos longínquos, esporádica, intermediada pela alfabetização – Coff! Ruff!, dê-me um lenço, por favor. Essas dimensões, embora eu não fosse geógrafo, eram perfeitamente contornadas, fosse nas delícias das planícies de uma amizade direcional e leve, fosse nas dores do planalto de uma amizade pesada e traiçoeira.
Levante a minha cama, por favor – Coff! Ruff! Sabe quando a enfermeira chegará? Eu acho que o cilindro está acabando, porque o ar está com cheiro de lata, quase enferrujado. He… heee Coff!!
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– Não se esforce, vovô; descanse para continuar a história.
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Pois bem – Coff! Caff! Veio, de repente, a modernidade e condensou… – Coff! Ruff! Não aguento mais comer comida líquida – …a convivência em objeto único. Os problemas da aritmética e checklist foram sanados; as limitações geográficas, extirpadas. Trouxe, por outro lado, o dilema da atenção simultânea (alguns reclamavam de não responder, de não curtir, e da minha condição low profile – estrangeirismo americano usado à época. Ah… como eu queria respirar melhor).
A logística da amizade era a concentração em grupos – Coff! Oof! Três, ou mais, encarregavam de ser o administrador e adicionava os demais – o resto acontecia nos grupos Coff! Ruff!… se eu tivesse força, queria tocar uma flauta pan.
Eu me lembro, como se tivesse tirado print, da materialização da vida de todos em caracteres, fotos, emoji, curtidas. Em textos, contavam e reeditavam… Coff!!! Coff!!! …os comentários acerca de suas vidas. Como roteiristas, contavam sobre amores – que ganharam e perderam –, política, ciência, e arquitetavam seu futuro sob as bases dos seus egos, como se o tempo voltasse para eles.
Todos estavam em perfeito contato, mas, concomitantemente, sem nenhum: a Lurdes conversava com Flávio, mas não o encontrava muito; eram próximos, por mais que pareça estranho. Coff!. Essa enfermeira não vem. O cheiro da lata está predominando sobre o oxigênio.
O revezamento da luz e do vibrado – eu gostava de deixá-lo, Coff! Ruff!, pois ficava muito sozinho e era refém do silêncio; eu queria, assim, ser o prisioneiro rebelde deste – eram os convites para convivência (casamentos, trabalho, festas e por aí vai. Ai, que cansaço… coff!).
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– Olá, Osvaldo! Eu sou a Patrícia, sua nova enfermeira; sua filha, que não estará tão presente, contratou-me para cuidar do senhor. Eu irei, agora, aferir sua saturação.
Osvaldo, redarguindo à petulância da enfermeira quanto ao seu claro estado de saúde, esforçou-se para levantar seu indicador; apontou-o rente à cara daquela, que sorriu.
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O que mais se destacava na amizade era os status. Sabia-se o que cada um fazia em relação ao outro. Acordava-se. alguns mais cedo; outros mais tarde – Coff!! Estou ficando tonto – e tomava-se café virtualmente e, avisando-lhes, saía para trabalhar.
Como o fio das Moiras, o status; alguns enchiam de coisas e – Coff! Gosto de sangue ruim – tecia a vida de cada amigo, revelando os efeitos do tempo.
Tudo era maravilhoso – Ruff! Ai, meu peito. Eu tive muitas alegrias e tristezas, mas elas, sobretudo foram percebidas quando não havia atualização do status, bem como a diminuição dos caracteres e demonstrações de roteiro de vida, reduzindo-a a uma foto e a uma seguinte mensagem: visto por último há 1 ano.
– Vovô, eu vou ao banheiro; assim que eu voltar, continue.
– Coff! Ah… ruff! Está bem, minha neta.
Lara foi ao banheiro, mas mudou de rota, direcionando para um rapaz que a chamava, com o dançar das mãos pela leveza. Ele lhe disse para ficar no corredor e para não entrar no quarto, pois ligaria para sua mãe, avisando-lhe para vir buscá-la.
Com a sapiência misteriosa da infância, Lara ficou intrigada e relutante, saindo correndo em direção ao quarto do seu avô, momento em que caiu sob o chão, chorando e dizendo: “Eu quero atualizar o status dele; ele não fez isso ainda; deixe-me, por favor, seu moço”. O rapaz, com atitude de Moira, segurou a menina e conferiu se a porta estava fechada, trancando-a agora.
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Avaliações
2 avaliações encontradas.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Tem um bom plot, que segue em um bom ritmo, está bem escrito e o estilo é coerente.
Entretanto, o desafio propõe que exista uma alteração da condição do narrador protagonista e o próprio texto do narrador precisa transparecer suas alterações.
Não percebi nenhuma alteração (apesar do falecimento). Na primeira linha, logo na terceira palavra, ele começa a tossir e segue tossindo até o final. Não houve uma mudança em sua narração, o protagonista-narrador seguiu da mesma forma do início ao fim. Por isso dou uma nota baixa no quesito desafio, pois considero que não ocorreu seu cumprimento.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Vou comentar enquanto leio.
Tirei “pigarros gritando” do final do primeiro parágrafo, porque não vi nenhum sentido (sujeito a contestação).
Troquei:
– seja nas delícias / fosse nas delícias
Ponto depois de: “usado à época”.
Fiz muitas outras alterações, como os asteriscos pra dividir melhor os momentos de mudança de narrador. Arrumei várias pontuações em volta das tosses, pra tentar melhorar algo que não sei ao certo como deveria ser.
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BORA LÁ:
Plot: Gostei muito. É sobre um senhor em vias de morrer, mas que experimentou alguma modernidade, como redes sociais, e acaba morrendo numa situação triste.
Escrita: A escrita está muito boa, com as poucas coisas que pontuei acima. Esse recurso da tosse não é difícil de fazer e, como escolha consciente, tem que arcar com o prejuízo do leitor não gostar. Por fim, o palavreado é bastante relevante pra história.
Execução: Tem pouca enrolação, gostei. Praticamente tudo serve pra desenvolver o personagem ou pra avançar a trama e ainda gerar o clima. Não notei furos no roteiro.
Estilo: Esse é o conto mais diferente do Bruno 02. A pegada está bem diferente e eu gostaria de ver mais coisas assim.
Desafio: Achei um pouco difícil notar a alteração acontecendo na narração, pois desde o início (e isso vai até o fim) ele está lúcido, tossindo e contando sobre o passado. A nota aqui vai prejudicar um pouco, mas consertado isso, eu altero a nota deste critério.