Quando o herdeiro do duque de Nova Centauri se afogou nas febres da doença, não foi a nanomedicina ou a neuroligião que aliviou suas dores até à recuperação.
“E então, gostou da minha nova composição?”
Foi a Arte.
“Sem você e o seu…”
“Alaúde.”
“Isso, isso! Sem você e o seu alaúde, eu jamais teria suportado aqueles malditos dias; sequer poderia suportar qualquer um dos dias seguintes, também. Essa… coisa…”
“Coisa…?”
“Música; é assim que você chama isso, não é? Música. Sem isso, sem ‘música’, acho que jamais seria capaz de relaxar do trabalho; de… olhar pras coisas, do jeito que você olha.”
“E como é que olho pras coisas?”
Ela largou o instrumento e engatinhou por cima dele.
“Por acaso é assim,
que eu olho,
pras coisas?”
Os olhos dela o fitaram, azuis feito galáxias, centrados cada um por uma pupila escura e crescente, como são os buracos negros.
“Desse jeito, vou acabar ficando doente t.”
“Pode apostar que vai.”
E aqueles olhos siderais o engoliram outra vez.
Com o tempo, essas “aulas particulares” foram se tornando passeios em jardins multi estelares, visitas a museus iônicos, jantares em restaurantes com vista para nebulosas recém formadas, travessuras em feiras locais e em lojas extra-lácteas e piqueniques, diurnos e noturnos, em topos de dunas montanhísticas e em beiras de lagos oceânicos – sempre acompanhados de beijos, brincadeiras e risos que rimavam como os versos das canções que ela já havia composto, e que ele, não sem muitos tropeços no caminho, aprendia, verso a verso, nota a nota, a compor e a cantar, tão nervoso e constrangido quanto atento e devagar. E com o tempo, esses todos também foram minguando. Desta vez, porém, sem transformarem-se em algo belo e frutífero: apenas foram perdendo a cada sorriso, piada e beijo, suas energias cinéticas, térmicas e químicas. E quando ela finalmente disse que era hora de partir, de seguir seu caminho – pois, como ela já lhe havia explicado muito antes, “o Bardo canta sozinho” –, ele disse:
“Não vá, fique, fique!”
“Sabe muito bem que não há espaço suficiente para nós na estrela que está prestes a governar.”
Ele tomou as mãos dela.
“Espaço não é imutável: naves o encurtam com seus motores de dobra; planetas o flexionam com suas densidades; estrelas o iluminam com suas supernovas.”
Olhou nos olhos dela – azuis como anãs brancas, centrados por pupilas escuras e miúdas, como são os mistérios distantes dos abismos extra-estelares –, com os olhos de quem desbrava destemido as trevas e os abismos do espaço.
E naquela mesma noite, diante da última embarcação para Andrômeda, sob a promessa de mover mundos e universos em nome da música e do amor.
“Sim! Por todas as cordas do meu alaúde, por todos os dedos das minhas mãos e por todas, todas as canções que me custaram dias e noites e dívidas: sim, sim!”
Eles noivaram.
Entusiasmado com a vindoura ascensão do herdeiro ao trono do ducado, o povo de Nova Centauri festejou alegremente dez dos doze feriados do ano, que foram dobrados – conforme a tradição de sucessão de regência – de uma para duas semanas, em honra ao último ano de regência daquele glorioso e longínquo reinado que foi o do nono duque de Nova Centauri, que já se sentia velho demais para seguir governando.
E a cada festa, a cada brilho de explosão de fogos e grupo de crianças brincando nas ruas, o sorriso dela encontrava mais e mais esperanças e certezas nas promessas que o futuro duque lhe havia feito quanto ao futuro do futuro duque e quanto ao futuro da futura duquesa, e também quanto ao futuro de ambos os futuros esposo e esposa, duque e
duquesa, poeta e poetisa.
Contudo, naquele ano, o povo festejou apenas dez dos doze feriados anuais. No décimo primeiro, vieram os protestos, as greves e as manifestações, que foram precedidas pelos boatos e contemporâneas às certezas do noivado, até então mantido em segredo apenas pelos noivos e por ninguém mais; e esses foram como que a concretização daqueles mundos e universos que aquelas promessas haviam jurado combater, custasse o que fosse.
No último mês do ano, houve comemorações durante todos os dias e noites, em todos os cantos da estrela. Mas não foi o povo quem festejou: sem contar os bêbados inveterados e as crianças, a quase totalidade dos festejantes eram funcionários públicos, mercenários e atores profissionais contratados ou obrigados pelo duque – tudo feito às despesas das fortunas dos cofres reais, na desesperada tentativa de persuadir A Tradição – tão antiga quanto a primeira coroação do primeiro duque, anterior até mesmo à Constituição da estrela e à renomeação do astro de Próxima para Nova Centauri, que surgiram apenas a partir da segunda e terceira regências: o duque, governa, sozinho. E por “sozinho”, queria-se dizer, exclusivamente, “solteiro”, pois o duque era acompanhado por um conselho cujo cada cada membro tinha capacidade militar suficiente para confrontá-lo, em caso de abusos de poder por parte do duque; e também o duque tinha direito a um harém de amantes, para fazer-lhe companhia. Porém, era todo – por lei, e mais importante ainda, por Tradição – composto por aias treinadas em laboratório, por máquinas e substâncias, para satisfazer a todos os desejos do duque; salvo por um, o mais perigoso dentre todos, a razão pela qual os primeiros colonos da estrela Centauri partiram dos planetas do sistema e fugiram refugiar-se naquele remoto astro, estabelecendo sua lei, seu nome e, antes mesmo, sua Tradição: o amor, flagelo invencível dos mundos e povos do presente e do passado.
“Não deveria ter aceitado; não deveria ter confiado nas tuas palavras! Agora, vamos ambos sofrer muitos mais do que teríamos sofrido, se tivéssemos nos despedido naquele dia…”
“Não! Por todas as teclas do meu piano, por todos os dedos das minhas mãos e por todas, todas as canções que me custaram dias e noites e reuniões: não, não!”
E assim, na véspera da coroação, o futuro duque jurou à futura duquesa que, no futuro que seria o dia seguinte àquele dia, ambos se casariam e seriam coroados.
A reunião com o conselho – que quase provocou secessões suficientes para reduzir o domínio do ducado, que então era da totalidade do astro, a míseras dezenas de centenas de milhares de quilômetros quadrados – não terminou até antes da penúltima hora que pareceu a coroação.
Durante a reunião, a poetisa, futura esposa e duquesa, recorreu aos medicamentos da nanomedicina e aos conselhos da neuroligião, buscando certeza e tranquilidade, sem encontrar nenhum dos dois; e sua arte, também, não lhe inspirava outra emoção que não a angústia, que já a assolava.
E seguinte ao momento em que a coroa finalmente pousou no topo da cabeça do então nomeado duque de Nova Centauri, ele, agora duque, professou seu primeiro discurso ducal:
“O reinado de meu pai, como todos bem sabem, foi glorioso e longínquo. E embora as primeiras dez festas dobradas tenham contado com a alegria e o entusiasmo de todo o povo de nossa admirável estrela, as últimas que se seguiram foram, infelizmente, marcadas por justas recusas e cóleras. Meu povo centáureo teme que seu duque caia nos erros dos terráqueos, dos júpteos, marteos saturneos, urâneos, vênuos, mercúrios e netúneos; meu conselho, composto pelos mais sábios e leais nobres de todo o sistema, ameaça ter de tomar medidas drásticas, em nome de nossa tão cara ordem e prosperidade, conquistadas pela bravura e sacrifício de nossos antepassados, e mantidas a salvo, por inteiras nove gerações, pela Lei e pela Tradição. Temem que eu me entregue ao Flagelo, que eu governe não pelo brilho absoluto de nosso esplendoroso astro, mas pelas faíscas contingentes das nebulosas, que vem e vão como fazem as caudas e rastros efêmeros dos cometas cadentes.”
Todos no palácio, na praça em frente e no resto do planeta foram absorvidos nas trevas das ânsias e nas expectativas do silêncio. Numa antessala, cuja entrada era coberta pelas cores semitransparentes das cortinas traseiras ao trono, aguardavam febris aqueles olhos de pesar quântico, de lágrimas sobrepostas, sustentadas pelas pálpebras entre o júbilo e o pranto.
Em seus ombros, o tecido raro de um vestido sem análogos nem cópias, feito sob medida; em suas mãos, uma tiara: a coroa da primeira, e talvez última, duquesa de Nova Centauri.
“Não haverá casamento! Não romperei nosso elo centáureo! Ao futuro de meu povo, eu, décimo duque de Nova Centauri, declaro o indomável raiar da Lei.”
Palmas, gritos, assovios e fogos tomaram a superfície e a atmosfera da estrela, que brilhava como nunca, tal qual fosse pequeno sol nos limites do sistema solar. E quando virou-se, por um instante mais curto que a cauda de um cometa, o décimo duque de Nova Centauri não encontrou, naquelas cores semitransparentes, a silhueta do temível Flagelo.
Já no primeiro mês do ano seguinte, o décimo duque de Nova Centauri convenceu ambos conselho e povo a segui-lo numa ousada empreitada: imperar sobre o restante do sistema solar.
Sendo o único corpo celeste em que até então havia sobrevivido a herança da civilização, Nova Centauri, já nos primeiros dez meses do ano, venceu armadas bárbaras inteiras, tomando de assalto planetas e estrelas, subjugando-as como colônias. Terráqueos, jupteos, marteos saturneos, urâneos, vênuos, mercúrios e netuneos foram transformados em vassalos, servos e, na maioria, escravos. Do décimo ducado de Próxima Centauri b, surgiu o Império Centáureo, o primeiro de toda a história humana a conquistar a totalidade do sistema solar.
No décimo primeiro mês daquele mesmo próspero e vitorioso ano, o Alpha – como veio a ser chamado, por iniciativa do próprio povo, o antigo décimo duque, agora imperador – quitou as varandas, holofotes e telas do império para retirar-se em seus aposentos, na companhia de suas aias. A promessa era de que, após dois meses, estaria de volta, comparecendo a eventos beneficentes, tais quais nomeações de privilégios a certas estrelas e planetas que haviam provado sua lealdade e utilidade no decorrer dos últimos meses da indomável Cruzada Centáurea; e também abençoaria casamentos entre todas as casa da nobreza vassalar, condenando-as às intrigas do Flagelo, permanecendo sempre dependentes de Máxima Centauri (como foi rebaixada a estrela, no décimo e último mês da Cruzada, quando tornou-se capital do império).
E nada disso aconteceu. Os dois meses se passaram, e o conselho, que procurava e não encontrava seu Alpha, fez o possível, no decorrer dos três anos seguintes, para afagar os protestos do povo, hora com diplomacia, hora com tirania, formando alianças aqui e ali, cedendo territórios menores e maiores, afundando, desesperados e movediços, em cisões e traições; até que, no fim do terceiro ano, as ruínas tornaram-se suficientes para que se torna-se evidente a queda do império.
Poucos meses depois da reestruturação do falecido império numa república federativa, vieram a público os arquivos, até então confidenciais, dos aposentos imperiais: descobriram-se os manuscritos de cartas, poemas e canções compostas pelo desaparecido Alpha que, segundo o tema comum de todos os escritos, fugiu em busca de sua amada. Daí surgiram lendas e boatos e histórias – raramente assumidas como ficcionais; nas mais das vezes, evidentemente falsas – sobre as aventuras e desgraças, e amores impossíveis do Imperador e sua Musa.
Anos depois, foi encontrado numa das extremidades de Andrômeda, o corpo solitário do então falecido Alpha, morto por causas desconhecidas (as diversas autópsias, feitas e refeitas dezenas de vezes, todas coerentes com as evidências encontradas no corpo, encontraram no entanto conclusões incompatíveis umas com as outras, igualmente prováveis).
Ao Bardo – como já era e ficou ainda mais conhecida a também desaparecida amante do antes desaparecido Imperador, – atribuíram-se, além de nomes e títulos inventados, as diversas odes, elegias e cantos que surgiram anonimamente desde os primeiros dias seguintes à coroação do décimo ducado da antiga Nova Centauri, que tinham em comum alusões e referências ao então recém coroado duque, e também aos dois anos que antecederam o décimo ducado.
As composições posteriores ao desaparecimento do falecido Imperador, todavia, foram apontadas como apócrifas quase que unanimemente pela Comunidade Acadêmica da República Centaurea (CARC).
E hoje, se ainda vive e não perdeu-se nos labirintos passados, suicidas do remorso, ou nas brumas peçonhentas de uma nova paixão, ainda o Bardo canta sozinho.
Você não tem permissão para enviar avaliações.
Avaliações
2 avaliações encontradas.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Muito bom o plot, com uma mistura de ficção científica, mitologia e um conto de amor. Foi muito bem executado em um ritmo bom, fazendo o leitor querer ler a linha seguinte. Escrita com alto nível de qualidade (mas confesso que não entendi a preferência por aspas).
O desafio foi cumprido, mas também é possível que se trate de paixão ou cansaço de um tipo de vida e busca por outro estilo de vida.
No geral um conto de alta qualidade.
Plot Execução Escrita Estilo Desafio
Vou comentar enquanto leio.
Troquei repetições não-poéticas: “de novo” por “outra vez”; “custe o que custasse” por “custasse o que fosse”; “hora com diplomacia, hora com tirania” por “ora…”; “raramente assumidamente ficcionais” por “raramente assumidas como ficcionais”;
Tirei: o segundo “minguando”; as reticências depois de “música e do amor”;
Travessão depois de: “lagos oceânicos”; “obrigados pelo duque”; “persuadir A Tradição”;
Vírgula depois de: “havia composto”; “coroa da primeira”; “e talvez última”; “e desgraças”; “desaparecido Imperador”;
Não tinha crase em “nota à nota”; tem acento em “centáureo”.
========
========
BORA LÁ:
Plot: Achei muito bom. Tem um pouco de Davi e Saul, e muito de A Fundação.
Escrita: Bastante ajuste de pontuação e outras coisas, como se vê acima. As próximas avaliações vão se beneficiar disso. Em geral, a escrita está boa, bem acima da média.
Execução: Os personagens são bem construídos, assim como a ambientação. Muita coisa do texto faz avançar a trama, mas algumas coisas soam como enrolação. Tem vários conceitos interessantes e subtramas levemente iniciadas.
Com relação ao roteiro, tem uma coisa zoada aí, que é o uso da nomenclatura “estrela” pra astros que parecem ser habitados.
Estilo: Tem bastante exposição e não sei se teria como não ser assim. Ainda assim, são decisões que precisam arcar com o custo. O texto tem uma pegada poética na medida, exceto em algumas frases muito difíceis de engolir, como esta: “nas promessas que o futuro duque lhe havia feito quanto ao futuro do futuro duque e quanto ao futuro da futura duquesa, e também quanto ao futuro de ambos os futuros esposo e esposa, duque e duquesa, poeta e poetisa.”
Desafio: Cumpre bem, 10 de 10. É realmente uma história de amor.