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O bosque de Terz-Qory

Se eu entendi bem – Dryg, o superintendente, pesou cada palavra com incredulidade e escárnio –, vocês não tomaram o forte Terz-Qory porque ouviram sons de bebês no bosque e enfrentaram árvores assassinas?

O sargento Pomek tinha os olhos arregalados, mas nada enxergava. Era a imagem de um homem apavorado, oposto ao que diziam os relatórios que Dryg tinha em mãos.

Eu sei o que parece, senhor superintendente, mas eu tenho minha honra intacta no meu relatório. Estou no meu perfeito juízo. E não sou covarde. O que eu vi eu não consigo explicar. Mas eu ouvi histórias. Histórias que, até então, ignorei, mas que seria um tolo se continuasse a desprezar. Há um espírito vingativo e carniceiro em Terz-Qory. Não posso fingir que não há.

Dryg estudou o homem à sua frente enquanto o silêncio pedia vez. Por fim, concluiu:

Muito bem, sargento, vamos ser claros. O relatório é inconclusivo, lacunoso e… simplista demais para uma situação tão… incomum. Então o senhor sabe que eu não posso aceitá-lo assim. Porém, vou dar-lhe o benefício da dúvida, em respeito a seu histórico. Tire o restante da noite para comer, dormir e pensar. Pela manhã, espero algo melhor. Dispensado.

O sargento acenou rigidamente e, sem qualquer palavra, deixou a tenda. Restaram Dryg e o capitão Bakyatin, cuja expressão endurecida não escondia o desprezo pela companhia que lhe restou.

Bakyatin foi chamado às pressas ao acampamento para acompanhar a investigação da morte de um soldado de elite.

O que pensa disso, Bakyatin?

Não estou aqui para supervisionar. É seu trabalho.

São homens de sua responsabilidade. Estou lhe dando a chance de salvá-los de uma indecorosa reclusão, capitão.

Saiba então, superintendente, que eu mesmo não os pouparia se acreditasse que há intenção mentirosa no relato. Mas Pomek é um homem de honra, não o tenha por um menino assustado… ainda que, hoje, se assemelhe a um. Homens amedrontados tornam-se irracionais e não será uma ação disciplinar que mudará isso.

Dryg arqueou as sobrancelhas.

Já o viu assim?

Não, não o vi. Ajudo em mais alguma coisa?

Qual era o nome do soldado que morreu?

Morreu? – esbravejou. – Falando assim, faz parecer que teve um infarto ou se engasgou. O soldado se sacrificou. E não era soldado raso, mas de divisão especial. Um duna chamado Aruz.

Longe de mim querer desonrar a memória desse rapaz. Ouvi histórias escandalosamente duvidosas sobre ele. E, nesse caso, falo como um elogio. Inclusive, já foi declarado morto mais vezes do que se diz da maioria dos mortais. Queria tê-lo conhecido antes dessa tragédia. Faremos a Cerimônia do Serviço Honroso quando voltarmos ao quartel.

A maior honra será dada hoje, quando os sobreviventes chorarão sua ida e beberão em sua memória. Ocasião para qual pretendo não me atrasar mais. Se me dá licença.

Tudo bem. Pode ir.

Trocaram continências. Dryg ficou só, o relatório ainda em mãos. A caligrafia bamboleante do sargento revelava o abalo do autor. Questionou-se se tinha alguma verdade naquelas palavras.

Suspeitou, desde o princípio, que se tratava de um regimento tentando esconder uma falha vergonhosa em cumprir uma missão relativamente simples. Porém, deparou-se com um relato fantasioso. Ou era isso, ou havia, de fato, um ser imaterial protegendo o lugar. A segunda hipótese precisava ser falsa.

Pela manhã, sabia o que deveria ser feito. Mandou chamar o capitão e todos os homens que estiveram no bosque, de forma que a tenda ficou pequena para tanta gente. Ordenou:

Voltarão ao local.

Multiplicaram-se murmúrios hesitantes entre os soldados.

O superintendente continuou:

E eu serei levado junto. Vamos durante o dia. É a minha decisão.

Superintendente – o capitão Bakyatin contestou, indignado –, tenho que perguntar: quer nos condenar à morte?

Capitão, que perigo tanto teme? O forte já foi localizado. Precisamos tomá-lo, e não poderemos se não encontrarmos uma maneira de atravessar o bosque. Temos uma missão a cumprir.

Vamos à morte, então. Acompanharei a missão dessa vez.

Já contava com o senhor, capitão. Por isso mandei chamá-lo. Com alguém de seu gabarito não precisamos ser tão pessimistas. Se tivermos sorte, recolheremos o corpo do duna Aruz para enterro apropriado.

A murmuração ganhou robustez, embora ninguém se atrevesse a direcioná-la, de alguma forma, ao superintendente.

Estamos sendo punidos? – foi o sargento quem perguntou, emudecendo os demais.

Sargento, se fosse punição, acha que eu iria junto?

O senhor vai porque não viu o que vimos, não ouviu o que ouvimos. Preciso insistir, senhor superintendente, aquele lugar representa a morte. Não temos armas para matar o que já morreu.

Vozes concordantes somaram-se em sequência.

Um sorriso cínico desenhou a boca de Dryg quando ele respondeu:

Terei minha chance. Além do mais, temos a vantagem de saber o que enfrentaremos. Protejam-se das árvores e dos bebês e tudo ficará bem. Partiremos após o desjejum.

Depois da refeição matinal, partiram do acampamento no vale em direção ao bosque denso de galhos retorcidos e folhas amarelo-alaranjadas da savana.

O caminho foi triplicado pelos medos e lembranças. Um dia atrás trilhavam-no acompanhados de um brutamonte. Aruz era mais do que um soldado e elite: um líder nato, além de uma besta enjaulada com ódio, destinado ao triunfo. Que pena cruel escreveria que um bosque amaldiçoado fosse sua lápide?

A empreitada anterior causou estragos na cabeça dos excursores. Sentiam que estavam caminhando para a morte. Os abutres sobrevoando as árvores só confirmavam o mau presságio.

O sargento Pomek não conseguia afastar as histórias de espíritos vingativos que assombravam aqueles com sangue em suas mãos. E havia algum ali que não tinha? Para ele, estavam condenados.

Bakyatin, o capitão, por sua vez, cético e rígido quanto a tudo que não se pode explicar pela razão, lembrou-se da lenda das crianças canibais, amaldiçoadas por feiticeiros do deserto e aprisionadas em um bosque, para nele perecer. Uma vertente da crença assegurava que o bosque as aprisionou. Teria sido aquele o seu túmulo? O que o medo não faz. Um homem lúcido pensar nessas bobagens… concentrou-se no que podia ver, para afastar das ideias o que era absurdo.

À luz do dia, nos passos ingressantes, o bosque parecia menos sinistro. Todavia, os ramos dançavam ao vento, mãos cadavéricas, zombando dos invasores. Dedos enrijecidos pelo tempo, apontando com desdém.

Havia um cheiro doce enjoativo no ar, ausente naquele outro dia. Quando encontraram uma porção de corpos retalhados e inertes sobre o chão, perceberam que o aroma que vinham sentindo não passava de podridão temperada pelo cheiro da mata.

Mais de um soldado vomitou diante da cena. Um horror vermelho-escuro. Havia uma expressão de horror em alguns dos rostos cuja face era possível distinguir.

A carniça atraiu as asas negras de abutres que festejavam o banquete. Eram tantas que se assemelhavam a um quartel de penas. Ouriçadas, assustavam, desencorajando qualquer avanço.

Um vulto, um movimento distante, outro do alto, o som abismal infantil. Um choro escandaloso ecoou forte, vindo de todo lugar e lugar nenhum. O desespero se apossou dos soldados. Sentiram-se impotentes, paralisados, as pernas tremendo, os olhos viajando de galho em galho, em todas as direções.

Fiquem calmos, mantenha as posições, olhos nos galhos, protejam o companheiro do lado – ordenou o capitão, esforçando para superar a voz trêmula.

Os abutres bateram asas em fuga, mas nem todos foram rápidos o bastante. Galhos sinuosos se estenderam, cortando e empalando as aves no ar. O sangue negro respingou como chuva.

Por ordem ou instinto (não saberiam dizer), os soldados se agruparam, lanças erguidas. Alguns ouviam sussurros, outros, podiam jurar que viam sombras vivas se escondendo atrás das árvores, e o choro da criança era tão real que demandava socorro.

No meio da confusão de penas, esganiçamentos, asas e galhos cortando o ar, o soldado Farec cedeu ao pânico e abandonou a formação, correndo desesperado. Não por muito tempo.

Um dos galhos o empalou a vinte metros da posição, arrancando lamentos dos demais. A sensação de impotência foi reforçada quando o homem foi suspenso lentamente no ar. Um cipó envolveu seu pescoço feito uma serpente e o estrangulou.

A floresta não tinha pressa e não temia a resistência dos expectadores.

Outro galho se projetou contra um dos soldados que conseguiu levantar seu escudo instantes antes do impacto. Precisou ser amparado por um colega para não cair no chão.

Como um chicote, um galho flexível estalou no tornozelo do soldado Inke, partindo-o. Bakyatin cortou agressor enquanto Inke se recompunha.

Não se deixem abalar! Concentrem-se, mantenham as posições! Vocês são soldados de Mizzavel, não são homens comuns! – gritava o sargento, mais por instinto que por esperança.

Eu vi algo. A criatura nos cerca! – disse um dos soldados.

É o espírito do bosque. Um Barikashi! – gritou outro.

Não seja estúpido, Martjabe! Você vai morrer acreditando nessas besteiras. – um terceiro respondeu.

Uma ordem poderosa sobressaiu:

Calem-se, todos vocês! – a voz do capitão ecoou por toda a floresta, que emudeceu, como se também o obedecesse.

O silêncio só foi interrompido pela voz trêmula do soldado agoniante.

Ali. – Sussurrou, apontando com dificuldade.

Das alturas, descia uma criatura grotesca, uma aberração de improvável existência. Exibia asas descomunais que cortavam o ar. De um esplendor ancestral, que despertava temor e admiração. Com cauda empavoada, penas feito cascas de árvore, olhos de um brilho amarelo opaco, carregados de séculos de maldição e uma garganta que se inflava como um pulmão exposto, a imensa ave atacou.

Enquanto descrevia sua investida agressiva, o choro infantil se avolumou, atiçando cada árvore ao seu desejo, em uma orquestra de assassinos de madeira.

Os soldados foram tomados pelo medo. Os galhos que ameaçavam, movimentavam-se erraticamente. Eram lanças agitadas por uma multidão incontrolável e oculta. A imprecisão de onde o ataque viria os agoniava. Ainda precisavam dividir a atenção com o monstro que sobrevoava o destacamento.

Contudo, o choro se interrompeu abruptamente, seguido pelo som de carne sendo perfurada após um projétil rasgar o ar. A ave, grande como um javali, caiu do alto em arco numa batida seca. Os olhares acompanharam, incrédulos, da criatura morta, uma lança atravessada, para seu algoz, enquanto o bosque recolhia suas garras em um descanso súbito.

Aruz! – gritou o sargento Pomek.

Aruz! – fizeram coro a ele.

O desgraçado é imortal! – o capitão entusiasmou-se.

O homem estava sujo e muito ferido, mas vivo. Os olhos queimavam com a típica fúria que o consagrou.

Por que demoraram tanto?perguntou.

*****

O relatório do superintendente Dryg foi apresentado diante do comandante Vertrus e outros oficiais, conforme disciplinava o regimento militar:

Descobrimos que o ‘pássaro-do-choro’, ou Ağkuş (catalogado no bestiário oficial da Academia Erudita Rossatyr), catalisa as árvores dançarinas, criando um ecossistema mortal. Quando neutralizamos a ameaça, prosseguimos. O forte estava vazio, mas havia sinais de ocupação recente. Tudo indica que foram os corpos que encontramos mortos no bosque. A criatura os atraiu com o choro assemelhado ao de bebês, e os exterminou no bosque. A missão foi concluída com sucesso. Destaca-se, em tempo, a bravura do soldado de classe Duna, chamado Aruz, pela qual se recomenda devido reconhecimento. Nosso único revés trata-se do soldado Farec.

*****

O superintendente Dryg esteve certo o tempo todo. Não havia um ser de outro mundo no bosque. Todavia, sua certeza foi questionada quando esteve lá.

Não era um combatente e, quando viu sua vida a mercê dos soldados que suspeitou serem mentirosos e fracassados, desejou ter acreditado, no dia anterior, no relato de um espírito, um fantasma, um ser inexplicável que o sargento temia.

Porém, se fosse assim, a missão não teria sido concluída; Farec estaria vivo; Impossível dizer o mesmo sobre Aruz.

Tantos poréns.

Mas havia algo nessa história que não parecia fazer sentido. Não fazia ideia de como Aruz sobreviveu. Quando questionado, o rapaz disse que fez o que foi necessário. Assustado pelo olhar vazio do soldado, decidiu que a explicação bastava.

O choro do bebê o assustou. Um choro familiar. Levantou-se e acudiu seu filho no bercinho ao lado de sua cama, enquanto sua esposa dormia tranquila. Felizmente, não precisou lidar com monstros de penas ou seiva depois daquilo.

Voltou a dormir.

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Plot Execução Escrita Estilo Desafio

Passou no primeiro grande teste: reteve minha atenção e ao fim eu senti que a experiência de leitura foi positiva. Só com esses dois critérios já dá pra posicionar o texto acima de 70% em rendimento.
Eu já diria que o conto está próximo de uma qualidade comercialmente publicável. Achei as vozes da floresta bem perturbadoras. Gostei da criatura mítica. E entendi o roteiro.
Tem algumas palavras repetitivas e uns termos que me fazem parar de prestar a atenção na história para olhar para a estrutura linguística empregada. Mas fora isso, muito bom.